Nova Iorque (Folhapress) – Nada como uma tragédia de proporções bíblicas para escancarar, de uma só vez, todas as contradições e limites da sociedade atingida. É assim com a catástrofe de Nova Orleans, atingida pelo furacão Katrina no último dia 29, numa época de hegemonia absoluta dos EUA; foi assim em San Francisco um século atrás, quando o país ainda era potência de segunda classe. O drama do Katrina também expõe as contradições do império, que vieram à tona com os ataques terroristas a Nova Iorque e Washington, há exatamente quatro anos.

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Em 18 de abril de 1906, um terremoto destruiu San Francisco, então a maior cidade da Costa Oeste, com 350 mil habitantes. Um observador da época já imaginava qual papel teria o desastre na trajetória dos EUA, país que então colhia os resultados do impressionante boom industrial e tecnológico da segunda metade do século 19: "A catástrofe foi histórica. O interesse e a simpatia universais foram históricos. O problema de enfrentar a vida quando subitamente nos vimos sem o maquinário comum da civilização foi histórico", escreveu Morse Stephens, professor de Berkeley, em artigo no San Francisco Examiner por ocasião do segundo aniversário do terremoto.

Então como agora, a estupefação mundial diante da redução de uma sociedade civilizada e já bastante desenvolvida à condição de barbárie supera até mesmo o óbvio lamento pelos mortos – cerca de 3 mil em San Francisco, ainda incontáveis em Nova Orleans.

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O espanto atual equivale ao das testemunhas do célebre terremoto que devastou Lisboa em 1755. Afinal, perguntavam-se, como era possível que uma sociedade tão devotada a Deus, como a portuguesa, pudesse ter sido castigada dessa forma _suprema ironia, o sismo ocorreu num feriado religioso, e boa parte dos milhares de vítimas (entre 30 mil e 60 mil) morreu debaixo dos escombros de igrejas devastadas.

Para Oliveira Martins, em História de Portugal (1879), os portugueses consideravam-se alvo de vinganças diversas: "Os escravos vingavam-se da sua escravidão, os mendigos da sua pobreza, os maus da sua maldade". Até o rabino Jacob Bassan (1704-1769) tirou uma casquinha, dizendo que o terremoto havia sido castigo de Deus.

O mesmo poderia ser dito de Bush, se fosse o caso de pilheriar: afinal, o presidente americano e sua agenda política demonstram ser tão carolas quanto os católicos portugueses do século 18.

O terremoto português, por exemplo, incitou Voltaire (1694-1778) a questionar a tese de Leibniz (1646-1716) segundo a qual Deus criou o melhor mundo dentre os mundos possíveis. Perguntou o francês: que Deus permite uma coisa dessas? Rousseau (1712-1778) reagiu, dizendo que a tragédia de Lisboa só aconteceu porque havia uma cidade a ser destruída – obra dos homens, não de Deus.

No caso de San Francisco, como em Nova Orleans, Deus não está mais no centro do debate, pelo menos não seriamente, e a abordagem de Rousseau parece, portanto, mais adequada. Trata-se de identificar o quanto de humano há no caos. Exemplos não faltam.

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Em Nova Orleans, o império da lei, orgulho dos americanos, submergiu nas águas do lago Pontchartrain. Em seu lugar, materializou-se a terra de ninguém, ao ponto de obrigar o governo local a ignorar a correção política e mandar "atirar para matar" ("shoot do kill"), afim de frear a onda de saques.

Em 1906, o prefeito de San Francisco deu a mesma ordem, talvez com bem menos embaraço – afinal, os EUA tinham acabado de exterminar e expulsar boa parte de seus índios em sua expansão justamente para os lados da Califórnia, e não havia muita diferença, no espírito do Destino Manifesto, entre índios e saqueadores.

A massa de imigrantes chineses de San Francisco se enquadrava nessa mesma categoria de inferioridade, e a catástrofe serviu apenas para evidenciar isso.

O New York Evening Telegram de 20 de julho de 1906 noticiou que os chineses estavam sendo negligenciados nas operações de resgate. Um comitê encarregado de ajudá-los negou a acusação.

A imagem de milhares de refugiados negros amontoando-se em Nova Orleans, enquanto os moradores brancos conseguiram fugir da cidade porque tinham carro, deixa entrever a incômoda subsistência de padrões discriminatórios.

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Mas os pobres não deveriam se queixar. Afinal, furacões e terremotos podem ser uma "dádiva" – como declarou, sem cerimônia, o San Francisco Chronicle de 26 de abril de 1906: "Para os errantes e vagabundos que infestam San Francisco em grande número, o terremoto veio como o modelo de uma era de fartura. Em meio à privação geral (...), os vagabundos estão se passando por vítimas e, como conseqüência, estão vivendo muito melhor do que antes. Eles não têm nem mesmo de implorar por comida: ela lhes é dada alegremente".

Barbara Bush (mãe do presidente) – para quem os "desprivilegiados" de Nova Orleans estão melhor agora do que antes do furacão porque recebem assistência – certamente assinaria embaixo.