É um pedaço minúsculo de DNA -- apenas 81 "letras" químicas, enquanto o genoma humano inteiro tem 3 bilhões delas -- e nem merece o nome de gene, porque não se encaixa na definição do que os genes normalmente fazem. Mesmo assim, tal cisco bioquímico poderia ser um dos fatores-chave que diferenciam as mãos e os pés humanos dos membros de todos os outros primatas e vertebrados terrestres. Em outras palavras: se você conseguiu usar o mouse para clicar nesta reportagem e as pernas para caminhar até o seu computador, agradeça à fatiazinha de DNA.
A idéia parece exagerada, mas está sendo defendida num intrigante trabalho na edição desta semana da revista especializada americana "Science" . Trata-se de mais um passo num desafio que está só começando: determinar quais pedaços do genoma, o conjunto do nosso DNA, são responsáveis por "nos tornar humanos". E o curioso é que, pelo que essas pistas preliminares indicam, o importante não são alterações nos genes, mas na maneira como eles são ligados e desligados ao longo do desenvolvimento.
O trabalho coordenado por James Noonan, da Universidade Yale, foi justamente uma caça bem-sucedida às chamadas regiões não-codificadoras -- trechos de DNA que não contêm a receita para a produção de uma proteína, como acontece com os genes. No entanto, é comum que essas regiões sejam "interruptores" genéticos -- áreas onde as moléculas responsáveis pela ativação ou desativação de um gene próximo se ligam e iniciam sua função. Uma comparação possível seria com um botão de liga e desliga, embora a situação real seja mais complexa.
Sem desperdício
Uma estratégia para achar esses "botões" no genoma é comparar o DNA de várias espécies diferentes em busca de regiões não-codificadoras "conservadas" -- ou seja, nas quais a evolução não mexeu muito ao longo de dezenas ou centenas de milhões de anos. Como a natureza em geral não fica trocando coisas úteis, a "conservação" de um pedaço de DNA normalmente indica que ele é importante para o organismo.
Foi assim que Noonan e companhia chegaram à HACNS1, como foi batizada a região não-codificadora descrita no atual estudo. De fato, ela era conservadíssima em todos os vertebrados terrestres cujo genoma foi decifrado -- menos nos seres humanos. Entre nós, a região sofreu 16 mudanças em suas "letras" químicas -- cerca de quatro vezes mais a taxa média de mutações no DNA. Isso acendeu o sinal amarelo para os pesquisadores: provavelmente a HACNS1 teria uma função exclusiva da nossa espécie, raciocinaram eles.
E decidiram tirar a prova inserindo a forma humana do trecho, bem como a forma correspondente em chimpanzés e macacos resos, em embriões de camundongo, colada a um gene marcador que indicaria aos cientistas em que parte do organismo ela regularia a ativação gênica. O resultado foi no mínimo intrigante: a principal área aparentemente regulada pela HACNS1 envolve tanto o polegar (ou o equivalente do polegar nos embriões de camundongo) quanto o dedão do pé.
Para Noonan, não é surpreendente que o trecho tenha mostrado diferenças significativas apenas em humanos. "Na verdade, ele também está, em geral, conservado em humanos: as mudanças de seqüência estão modificando a função do regulador ancestral, e não criando uma função nova do nada. A maquinaria molecular necessária para formar uma asa de ave ou um membro humano é, no geral, a mesma: as diferenças anatômicas que vemos se devem a elaborações e modificações num programa regulatório central", declarou ele ao G1.
Sabemos que há diferenças significativas entre as nossas mãos e pés e as dos outros primatas. Fora o mero fato de andarmos com duas pernas, um exemplo envolve o polegar: os chimpanzés não conseguem dobrá-lo totalmente em oposição à sua palma da mão, e têm menos músculos nesse dedo do que nós, o que diminui sua destreza na manipulação de objetos. Os cientistas sugerem que a HACNS1 teria ajudado a regular essas transformações "humanizadoras" nas mãos e nos pés humanos, de uma forma que eles ainda precisam elucidar em detalhe.