Sede do Tribunal Constitucional espanhol, em Madri| Foto: EFE/Mariscal
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Conforme anunciado na terça-feira (9), o Tribunal Constitucional (TC) espanhol aprovou uma sentença sobre a chamada lei do aborto de 2010, declarando-a totalmente constitucional por sete votos a quatro. Não houve surpresas nos votos dos magistrados: o chamado "bloco progressista", que é maioria no TC desde sua renovação no final do ano passado e a eleição do presidente Cándido Conde-Pumpido, em janeiro de 2023, se impôs com unanimidade.

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A essência da sentença, de acordo com uma nota publicada pelo próprio TC, é reconhecer o chamado “sistema de prazos” – que o mesmo tribunal define como permitir o aborto “por livre decisão da mulher nas primeiras 14 semanas de gestação” – não apenas conforme a Constituição, mas como um direito cuja consagração legal é por ela exigida. O TC assim o argumenta: “O sistema de prazos segue a Constituição porque reconhece o espaço razoável de autodeterminação de que a mulher grávida precisa para efetivar seu direito fundamental à integridade física e moral, em conexão com seu direito à dignidade e livre desenvolvimento de sua personalidade. Esses direitos constitucionais exigem do legislativo o respeito e o reconhecimento de um espaço de liberdade no qual a mulher possa adotar, de forma autônoma e sem coerção de qualquer tipo, a decisão que considerar mais adequada em relação à continuidade ou não da gestação".

Como visto, o TC diz explicitamente que esses direitos constitucionais das mulheres exigem que o legislador proteja seu direito de abortar livremente. Dessa forma, o TC pretende vetar uma possível lei restritiva ao aborto no futuro, inclusive uma semelhante à de 1985, que o próprio tribunal declarou constitucional na época, pois para o TC a Constituição não diz mais o que dizia, embora não tenha sido modificada.

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Em seguida, o Tribunal Constitucional rejeita a crítica de que este sistema não protege a vida do nascituro, afirmando que "o sistema de prazos garante o dever do Estado de proteger a vida pré-natal, uma vez que há uma limitação gradual dos direitos constitucionais das mulheres em função do avanço da gravidez e do desenvolvimento fisiológico-vital do feto". Literalmente, segundo o Tribunal Constitucional, cumpre-se o dever constitucional de proteger a vida do nascituro deixando-o totalmente desprotegido durante as suas primeiras 14 semanas de vida. Onde a Constituição diz que "todos têm direito à vida", o TC lê que "a mulher tem o direito de abortar livremente".

A sentença visa encerrar para sempre o debate legislativo sobre o aborto, ao defini-lo como direito fundamental

Alinhado a estes pronunciamentos, o TC também declarou constitucional o restante do conteúdo da lei em julgamento, como a obrigatoriedade do financiamento público do aborto ou as restrições ao direito à objeção de consciência, sobre o qual o Tribunal Constitucional diz que “deve ser interpretado de forma restritiva”, e apenas “para o pessoal de saúde que realiza intervenções clínicas diretas, excluindo outras ações auxiliares, administrativas ou de apoio instrumental”.

Ideologia

Deve-se cumprir esta sentença porque não há outra escolha; mas é impossível não subscrever o que diz a juíza Concepción Espejel em seu correto voto dissidente: "A sentença não adere a uma interpretação estritamente legal, dando lugar a uma abordagem ideológica tendente a criar um direito fundamental inexistente das mulheres ao aborto que, além de deixar desprotegida a vida humana em formação, ultrapassa os limites da persecução do Tribunal Constitucional e acaba por impor o da LO 2/2010 como único modelo constitucional possível, bloqueando o caminho a qualquer outra opção legislativa”.

O TC, distanciando-se do que estabelece a sua lei regulamentadora e sem qualquer precedente para esta forma de agir (conforme indicam os votos individuais emitidos pelos quatro magistrados que votaram contra a sentença), fundamenta doutrina sobre preceitos já revogados pelo nova lei do aborto de 2023 e tenta encerrar para sempre o debate legislativo sobre o assunto. Em vão, por outro lado, porque se o atual TC altera arbitrariamente a sua própria doutrina de 1985, outro futuro TC também poderá alterar esta doutrina de 2023; como acaba de acontecer nos EUA, onde a Suprema Corte (que tem funções de tribunal constitucional lá) revogou a decisão Roe vs. Wade, de 1973, em um julgamento em 24 de junho de 2022 (no chamado caso Dobbs), declarando que não há direito constitucional ao aborto, como a decisão original havia reconhecido.

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Perspectiva de gênero

A “lei do aborto” de 2010, agora julgada pelo TC, tinha como título o de lei reguladora da “saúde sexual e reprodutiva e da interrupção voluntária da gravidez”; e coerente com essa denominação, além de regulamentar o aborto, continha diversos preceitos que tendiam a impor a perspectiva de gênero em todas as políticas de saúde, educação e sociais em nome da chamada “saúde sexual e reprodutiva”.

Essas disposições também foram contestadas perante o Tribunal Constitucional como sendo contrárias às liberdades e direitos reconhecidos na Constituição, como a liberdade de educação, ideológica, religiosa e de expressão e pensamento. A sentença também nega provimento ao recurso nesta matéria e ratifica a constitucionalidade destas normas enquanto entende que a perspectiva de gênero “constitui uma abordagem metodológica e um critério de interpretação de normas jurídicas destinado a promover a igualdade entre mulheres e homens”, e conclui que "a transmissão, através da educação e em todos os níveis educacionais, de ideias ou crenças ligadas à igualdade entre homens e mulheres não pode ser considerada inconstitucional".

Ao rejeitar um dos questionamentos à lei do aborto, a decisão define a “perspectiva de gênero” como referindo-se à igualdade entre homens e mulheres

A este respeito, concordo com o TC; e entende-se que delimita o sentido constitucional da expressão “perspectiva de gênero”, hoje tão utilizada em diversas legislações. Referindo-se à igualdade entre homens e mulheres, não há nada que se oponha à sua presença na educação e na saúde. O problema surge quando o conceito “gênero” é interpretado como substituto de “sexo” e sob sua proteção se pretende doutrinar dentro da chamada “diversidade de gêneros”, isto é, na antropologia da ideologia de gênero; esta segunda interpretação parece não ter lugar nesta doutrina constitucional.

Como neste momento só conhecemos o comunicado de imprensa em que o TC explica a sua sentença, mas não o seu texto integral, será necessário estar muito atento à redação final desta matéria; porque pode ser relevante para muitas outras questões e leis, por exemplo, educacionais.

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Contrários

Entre os sete magistrados que votaram a favor da sentença no plenário do TC, três foram recusados por motivos mais do que justificáveis e outra, Concepción Espejel, até se absteve por entender que havia nela e nos outros três uma causa de inaptidão. No entanto, o TC rejeitou tanto as recusas quanto a abstenção. Ou seja, quatro dos magistrados são objetivamente parciais, violando o direito constitucional dos recorrentes a juízes imparciais. Como esse direito também é reconhecido na Convenção Europeia de Direitos Humanos, vários dos recorrentes já anunciaram que vão recorrer ao Tribunal Europeu, que garante a aplicação dessa convenção.

Considerações finais

Estamos perante uma sentença que – para além das graves críticas que merece por deixar o nascituro sem qualquer proteção nos primeiros meses de vida e mostrar muito pouco respeito pela consciência ética e profissional dos profissionais de saúde – altera, na verdade, a natureza da próprio TC, já que atribui a si mesmo o direito de modificar a própria Constituição, fazendo dela uma leitura evolutiva e alterando radicalmente sua própria doutrina anterior sem qualquer constrangimento ou justificativa. Acredito que, para além da questão do aborto, é um duro golpe na Constituição e na autoridade moral do próprio TC, que, ao se politizar e ideologizar, torna-se mais um produto do debate político, perdendo a aura institucional que ainda tinha, com efeitos que serão dolorosos a médio prazo.

Por outro lado, como demonstra o caso dos EUA citado acima, a esperança não deve ser perdida. Agora é hora de trabalhar mais intensamente para recriar uma cultura de vida, para fazer surgir uma nova maioria política que possa um dia reverter essa jurisprudência e legislação injusta; e é hora de ajudar a prevenir o aborto, solidarizando-se com as mulheres grávidas, para que escolham a vida em qualquer circunstância. É hora de maior responsabilidade.

© 2023 Aceprensa. Publicado com permissão. Original em espanhol.

Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]
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