Em pronunciamento oficial sobre o escândalo que está ameaçando seu governo, o primeiro-ministro canadense, Justin Trudeau, não reconheceu como inapropriada a pressão que ele e seus assessores fizeram para que a ex-procuradora-geral Jody Wilson-Ray interferisse em um processo criminal contra uma grande construtora do país.
Em vez disso, Trudeau disse que "tem responsabilidade" pela erosão de confiança dentro de seu gabinete, citando especialmente as relações entre a equipe dele e de Wilson-Ray. Admitindo que teve conversas com a ex-procuradora-geral sobre a empresa SNC-Lavalin, Trudeau disse que "gostaria que ela tivesse vindo até mim" para falar como estava se sentindo quanto a essas conversas. "Diálogo é crucial", complementou.
Quando perguntado por jornalistas se sua declaração era um pedido de desculpas para a ex-procuradora-geral, Tudeau negou qualquer: “No que diz respeito a defender empregos e proteger nosso Estado de Direito, continuo dizendo que não houve pressão inadequada”.
Nesta segunda-feira (4) ele já havia dito que seu governo respeitou a independência do Judiciário ao mesmo tempo em que pressionou pela defesa dos empregos que poderiam ser perdidos caso a SNC-Lavalin resolvesse sair do país ou diminuir o quadro de funcionários. Trudeau reiterou que pensava em ajudar a empresa a evitar um julgamento por motivos econômicos.
Há um mês este caso está perturbando o país e destabilizando a liderança do politicamente correto Trudeau e de seu Partido Liberal. Saiba como as denúncias vieram à tona e as repercussões na política canadense.
Como tudo isso começou?
Em 12 de fevereiro, Jody Wilson-Ray, ex-procuradora-geral e ex-ministra da Justiça, renunciou ao cargo de ministra de Assuntos dos Veteranos do Canadá, que estava ocupando há apenas um mês. Em sua carta de renúncia, ela disse que sabia que muitos canadenses gostariam que ela falasse sobre "assuntos que estão na imprensa", referindo-se a reportagens veiculadas uma semana antes sobre a insistência dos assessores de Trudeau em tentar convencê-la de interferir no andamento de um processo de fraude e corrupção contra a construtora SNC-Lavalin.
Duas semanas depois, Wilson-Ray quebrou seu silêncio com um relato detalhado - e televisionado - perante o comitê de Justiça da Câmara dos Deputados. Ela falou sobre os esforços de Trudeau e seus principais assessores para persuadi-la a intervir junto aos promotores para que eles aceitassem fechar um acordo com a SNC-Lavalin, encerrando, assim, o processo contra a empresa. Ela argumentou que a atitude interfere no sistema judicial, embora admita que não é ilegal.
"Fui alvo de um esforço enfático por parte de muitas pessoas dentro do governo para tentar interferir politicamente", disse a ex-procuradora-geral, contando que também enfrentou "ameaças veladas" sobre o que poderia acontecer se ela se recusasse a pedir um acordo extrajudicial."
Wilson-Ray disse ainda que a intenção do primeiro-ministro e seus assessores em acabar com o caso era, em parte, para impedir a realocação da empresa para outro país, e também para evitar as consequências eleitorais para os liberais e membros da ala de Quebec do partido – província onde está sediada a construtora.
Do que a SNC-Lavalin está sendo acusada?
A SNC-Lavalin é uma empresa de engenharia, sediada em Montreal, na província de Quebec, que empresa cerca de 9 mil pessoas no Canadá – 3.400 em Quebec. Ela está sendo acusada de pagar 48 milhões de dólares canadenses (cerca de R$ 136 milhões) em propinas para a família do ditador Muamar Kadafi, morto em 2011, para garantir contratos lucrativos na Líbia. Isso teria ocorrido, segundo os promotores, entre 2001 e 2011.
Se for considerada culpada das acusações, a SNC-Lavin pode ser impedida de participar de licitações do governo federal canadense por dez anos. Em vista disso, executivos da empresa pressionavam para firmar um acordo com a justiça a fim de encerrar o processo criminal, o que não ocorreu, já que os promotores decidiram levar o processo adiante.
A empresa também está enfrentando processos judiciais por supostamente ter adiado a revelação de que não conseguiria um acordo com a promotoria, de 4 de setembro até 10 de outubro. A SNC-Lavalin defende que a “decisão final” do promotor ocorreu somente em 9 de outubro.
Quais foram as consequências políticas?
A presidente do Conselho do Tesouro, Jane Philpott, seguiu a atitude de Wilson-Raybould e também renunciou, deixando o gabinete de Trudeau sem duas das mais proeminentes mulheres da administração.
"A evidência dos esforços de políticos e/ou autoridades para pressionar a ex-procuradora-geral a intervir no caso criminal envolvendo a SNC-Lavalin e as evidências quanto ao conteúdo desses esforços levantaram sérias preocupações para mim", disse Philpott em sua carta de renúncia. "Infelizmente, perdi a confiança em como o governo lidou com este assunto e em como ele respondeu às questões levantadas".
As saídas deixam a ministra das Relações Exteriores, Chrystia Freeland, como uma das poucas mulheres que ocupam um importante cargo ministerial, junto com Carla Qualtrough, ex-ministra de aquisições que foi nomeada chefe interina do Conselho do Tesouro para substituir Philpott.
O líder da oposição, Andrew Scheer, chegou a pedir a renúncia de Trudeau, algo que o primeiro-ministro disse que não fará. Outros legisladores disseram que querem uma investigação das relações entre Trudeau, seu assessores e a SNC-Lavalin.
O caso, amplamente noticiado pela imprensa canadense, também refletiu no cenário político pré-eleições. Pesquisas de opinião apontam o partido conservador com maior aceitação do que o partido liberal de Trudeau. Uma das mais recentes, do Instituto Ipsos, mostra os liberais com apenas 31% das intenções de voto, enquanto os conservadores, liderados por Andrew Scheer, aparecem com 40% dos votos. As eleições canadenses serão em 21 de outubro.