Em meio à enxurrada de revelações resultante do lançamento do bombástico livro de Michael Wolff, "Fire and Fury", sobre os bastidores da Casa Branca – e as acusações e contra-acusações, os trechos, os tuítes, o retrato brutal de um presidente infantil e sem noção cujos subordinados são forçados a produzir diariamente episódios para o Teatro da Capacidade Mínima de Concentração –, sem dúvida, a mais triste de todas é que o presidente dos EUA, o líder do mundo livre e famoso por ser o primeiro comandante-chefe sem animais de estimação desde Thomas Jefferson, não tem nem ideia de como são os cães.
Isso ficou claro durante um acesso particularmente feroz de fim de noite no Twitter, no qual o presidente, revirando-se feito um pretzel, ensandecido com a perfídia de Wolff e de seu antigo assessor e estrategista de campanha, Steve Bannon, escreveu: "Michael Wolff é um fracassado total que inventa histórias para vender esse livro chato e mentiroso. Usou o frouxo do Steve Bannon, que chorou quando foi demitido e implorou para ter o cargo de volta. Agora o molengão foi descartado feito cachorro por quase todo mundo. Que mau!".
Leia mais:
Trump bebe 12 latas de Coca-Cola Diet por dia
Tem muita coisa errada nesse tuíte, mas foi uma frase pungente – "descartado feito cachorro" – que atravanca o Mundo Canino feito um petisco atravessado na garganta. "O que exatamente implica em ser -descartado feito cachorro-? Perguntando em nome de um amigo preocupado (amigos, aliás)", tuitou a comentarista política da Newsweek, Celeste Katz, acima de uma foto de seus dois dachshunds. A arroba popular @weratedogs resumiu o sentimento questionando simplesmente: "Você... você sabe o que é um cachorro?".
Essa não foi a primeira vez que Trump lançou mão de comparações caninas para descrever um adversário, a seu ver, odioso, aquele inimigo que não só foi derrotado, mas humilhado a ponto de ter a própria humanidade questionada.
‘Feito cachorro’
Em 2016, Eric Levitz, da revista New York, fez uma compilação de alguns dos tuítes "feito cachorro" de Trump, para dar uma ideia de como o nosso líder vê o melhor amigo do homem.
Erick Erickson, que uma vez desconvidou Trump de um fórum republicano, foi "demitido feito cachorro"; Glenn Beck foi demitido "feito cachorro"; Bill Maher foi "demitido da ABC; de fato, dispensado feito cachorro!".
O presidente usou "cachorro(a)" para descrever a aparência de uma mulher de quem não gosta (Arianna Huffington é uma "cachorra que faz comentários errôneos a meu respeito"). Uma mulher infiel que trai seu homem "feito uma cachorra" (Kristen Stewart). Um homem que perdeu a eleição "engasgou feito cachorro" (Mitt Romney). O cão é o fracassado, o pouco atraente, indigno de fé.
O que, como qualquer um que já passou pelo menos cinco minutos na companhia de um cachorro pode atestar, é exatamente o contrário de tudo o que o animal é.
‘Melhor amigo do homem’
Tive a sorte de ter uma vida cheia de cães. Cresci com um buldogue fofo, mas meio lerdo, chamado Mort, que tinha que ser lembrado pelo menos duas vezes por semana de como se subia no sofá. Mort ficava cansado com qualquer caminhada que o levasse para além da entrada de nossa casa e, no verão, desabava de barriga para baixo na primeira poça que encontrasse – as perninhas curtas abertas, uma expressão na carinha enrugada e churchilliana que dizia, "Pelo amor de Deus, chega".
Quando tinha 23 anos, a garota com quem eu dividia o apartamento e eu vimos um anúncio na seção de classificados no jornal onde trabalhávamos: "Cachorro pequeno, manchado, disponível para um bom lar". Ficamos fascinadas por seu caminhar saltitante, o pelo cheio de manchinhas pequenas e os dentinhos pontiagudos. Nós o batizamos de Wendell – e quando ela foi embora, o rat terrier de cinco quilos passou a ser meu companheiro e eu, aos poucos, fui me tornando sua adulta responsável.
Mudei de emprego, tive vários namorados. Saí do interior da Pensilvânia para ir para Lexington, no Kentucky, e depois para a Filadélfia. Wendell era a minha constante. E estiloso, o danado: todo dia, de manhã, enquanto eu me arrumava para ir para o trabalho, Wendell ficava deitado na cama, patinhas cruzadas, só observando minha calça e o blazer combinando com um desdém frio. Era amoroso: quando eu voltava do trabalho, parecia que tinha voltado da guerra, com ele girando em círculos e pulando de alegria, como se dissesse: Você voltou! Você voltou! Você voltou você voltou você voltou você voltou! Ele acreditava em mim: toda noite, enquanto trabalhava no meu primeiro livro, adormecia aos meus pés, a sonolência sugerindo que estava preparado para trilhar um longo caminho – e que eu deveria estar também.
Vendi meu livro. Wendell fingiu indiferença, mas só posso crer que ele bem que gostou de ver a ração passar da genérica para a de marca famosa. Fiquei noiva. Wendell começava o dia correndo atrás do meu noivo pelo corredor, o pelo eriçado, a postura de quem diz "e não volte mais!". Já no fim da vida, Wendell tinha um cardiologista e tomava vários remédios, os comprimidos cuidadosamente esmagados e escondidos na ração úmida. Precisava de ajuda para subir para a cama, mas, mesmo assim, toda noite, dormia no meu travesseiro, todo enrolado, parecendo um halo sobre a minha cabeça.
Quando Wendell morreu, a impressão que tive foi a de que o mundo tinha saído de órbita. E quando finalmente chegou a hora de ter outro cachorro, minhas filhas foram categóricas, rejeitando puggles, poodles e buldogues franceses com orelha de morcego, insistindo que queriam outro cão "igualzinho ao Wendell". Em 2011, o Ratterrierrescue.com nos trouxe a Moochie, que tinha sido abandonada, prenha, em um abrigo, onde permaneceu muito depois de seus filhotes terem conseguido "lares permanentes". Moochie passa grande parte de sua vida a não mais de 1,5 metro de mim, anunciando meus movimentos e se antecipando no corredor ou nas escadas, enroladinha no cesto de palha enquanto trabalho ou nas pernas do meu marido enquanto ele lê, um pacotinho pintado de preto e branco de puro amor.
Antipatia
Nosso presidente não entende nada disso. Zombou do vice-presidente Mike Pence por permitir que a família levasse os gatos, a cobra e o coelho para Washington, classificando-os como "povão" e "provincianos". Enquanto isso, seus filhos, já adultos, são caçadores, cuja relação com os grandes mamíferos parece se resumir a perguntas do tipo "Posso matar?", ou "Posso cortar o rabo antes de posar para a foto?".
É preciso muito esforço para ter alguma simpatia por um homem cujo objetivo de vida parece só tornar o país mais dividido, encher os bolsos de dinheiro e começar uma Terceira Guerra Mundial no Twitter, não necessariamente nessa ordem – mas é difícil não sentir uma certa tristeza por alguém que não conhece o prazer único da companhia de um cachorro.
É muito provável que Trump nunca saiba o que é o calor de um cãozinho ao seu lado enquanto faz maratona na TV a cabo; não vai descobrir nunca que as almofadinhas de suas patas têm cheiro de Doritos, nem conhecer o prazer de vê-lo mexendo as patinhas, dando uns gritinhos curtos e rosnados enquanto persegue esquilos nos sonhos.
Trump pode até ser o presidente, andar de Air Force One, ter uma esposa modelo – para quem acredita –, e uma mesa de trabalho com um botão nuclear que é maior do que de qualquer outro. Mas se você tem um cachorro, é mais rico, sob vários aspectos, do que ele jamais será.
Afinal, pelo preço de umas lambidas e alguns hematomas nas pernas, você tem o amor incondicional e a lealdade inabalável de um verdadeiro companheiro.
E em uma Casa Branca em pé de guerra, permanente, mergulhada no caos e dividida por facções, alianças que mudam ao sabor do vento, intrigas e vazamentos contínuos, o presidente tem apenas Stephen Miller.
(*Jennifer Weiner é autora, mais recentemente, do livro de memórias "Hungry Heart" e contribui com a coluna de opinião.)
Não acredite nos esforços inúteis de Michael Wolff para minar Donald Trump https://t.co/ecTSXTdjNF
â Ideias (@ideias_gp) January 7, 2018