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Extradição

Turco de movimento opositor é preso no Brasil após pedido de Erdogan

O presidente da Turquia, Recep Tayyip Erdogan, no palácio presidencial em Ancara, Turquia, em julho de 2018. Foto: Arif Akdogan / Bloomberg (Foto: )

A Turquia pediu a extradição de um turco naturalizado brasileiro, acusando-o de ser membro do Hizmet - organização do clérigo muçulmano Fethullah Gülen, desafeto do presidente Recep Tayyip Erdogan e considerado terrorista por seu governo.

Ali Sipahi, 31, está preso preventivamente desde 6 de abril, enquanto o pedido de extradição é analisado pelo Supremo Tribunal Federal.

Ele é dono de um restaurante em São Paulo, vive no Brasil desde 2007 e tem um filho nascido no país. Se for condenado na Turquia, pode receber uma pena de 7,5 anos a 15 anos de detenção.

Sua prisão despertou temor entre imigrantes turcos, que veem o pedido de extradição como parte de uma campanha de perseguição conduzida por Erdogan contra opositores. Alguns decidiram deixar o Brasil, com medo de serem o próximo alvo.

Fethullah Gülen, que hoje vive exilado nos EUA, já foi aliado de Erdogan, até que passou a ser visto como uma ameaça e foi acusado pelo presidente de planejar uma tentativa frustrada de golpe contra ele em 2016.

Sipahi é acusado pela procuradoria de Ancara de ser membro da organização do clérigo por ter conduzido atividades no Centro Cultural Brasil-Turquia (CCBT) e na Câmara de Comércio e Indústria Turco-Brasileira (CCITB).

Criadas em 2011, as duas instituições promovem parcerias empresariais e intercâmbio cultural entre brasileiros e turcos.

Ambas são, de fato, ligadas ao Hizmet, movimento presente em diversos países e mais conhecido por suas escolas. Mas, segundo seus seguidores, são uma organização pacífica, focada em educação, tolerância religiosa e projetos assistenciais.

Acusações de terrorismo

Desde 2016, Erdogan empreende um expurgo contra simpatizantes do Hizmet, que inclui, segundo a ONU e ONGs internacionais, a demissão ou prisão de centenas de milhares de juízes, professores e outros funcionários públicos, sob a acusações de terrorismo.

Segundo a defesa de Sipahi, seu caso é o primeiro do tipo no Brasil. Ancara cita como suposta evidência um depósito feito por ele, entre 2013 e 2014, de 1.721,31 liras turcas (cerca de R$ 1.168) no banco Asya, que Erdogan fechou em 2015 por ser ligado a gulenistas.

Em 2018, a Justiça turca decidiu que correntistas desse banco podem ser considerados membros do Hizmet e, portanto, terroristas. A defesa de Sipahi alega que se tratava de um banco convencional -- o Asya chegou a ter 6 milhões de clientes.

A lei brasileira permite extraditar um cidadão naturalizado, desde que ele seja acusado por um crime comum (que não seja político ou de opinião) cometido antes da naturalização. Sipahi se naturalizou em 2016.

"Centenas de turcos naturalizados, com residência permanente ou refugiados que vivem no Brasil temem enfrentar o mesmo problema", diz o turco Kamil Ergin, que era correspondente no Brasil do jornal Zaman.

Ligado ao Hizmet e com circulação de 650 mil exemplares na época, o Zaman foi fechado em 2016. Depois disso, Ergin começou a trabalhar como motorista de Uber e hoje é sócio de um restaurante.

Fechando o cerco

Estima-se que existam de 200 a 250 simpatizantes e membros do Hizmet no Brasil. Grande parte veio para o país fugindo da perseguição do governo turco.

"Estamos no Brasil porque é um país democrático. Confiamos na Justiça, porque não cometemos nenhum crime", diz Ergin.

Mas o cerco vem se fechando, e muitos deixaram o país. É o caso do ex-diretor do CCBT Yusuf Eleman, que mora há um ano no Canadá com a mulher e a filha, brasileiras.

Segundo ele, funcionários do Consulado da Turquia passaram a procurar universidades como a USP e a PUC, onde ocorriam os cursos do CCBT, pressionando pelo cancelamento dos eventos.

"Vim para o Canadá porque aqui é mais difícil me perseguirem", diz Eleman. "Mas tive que começar do zero." Com mestrado em Ciência Política, ele trabalha como motorista de Uber e auxiliar de armazém.

Sócio de Sipahi no restaurante e presidente do CCBT, Mustafa Goktepe estava nos EUA de férias com a esposa, as filhas brasileiras e os sogros, mas adiou indefinidamente sua volta para o Brasil, marcada para 9 de abril. "Tenho medo de ser preso ao desembarcar em Guarulhos, como aconteceu com Ali", diz.

Ele é descrito no jornal governista turco Sabah como "o imã brasileiro do FETO" -- o governo turco só se refere ao Hizmet com essa abreviação, de "organização terrorista de Fetullah".

O CCBT auxilia turcos a pedir refúgio no Brasil, e Goktepe calcula que cerca de 100 já tenham iniciado o processo.

Pedidos de extradição de Güllen por parte do governo turco têm sido negados pelos EUA, com a justificativa de que não há provas contra ele. Outros turcos no exterior, como o jogador de basquete da NBA Enes Kanter, também enfrentam pedidos de extradição, acusados de terrorismo.

Defesa

A defesa de Sipahi quer reverter a prisão preventiva dele alegando que existe baixo risco de fuga, já que ele possui vínculos com o Brasil, como empresa, mulher e filho, e evocando o risco de violação de direitos humanos caso ele seja extraditado.

"A ausência de imparcialidade e independência do Judiciário é característica marcante do governo autoritário de Erdogan", diz o advogado Theo Dias. "A Justiça brasileira não deve cooperar com um governo que não respeita a autonomia do Poder Judiciário e tratados internacionais de direitos humanos", afirma.

A Embaixada da Turquia no Brasil não comenta o caso de Sipahi por ser um processo em andamento, mas disse em nota que o Hizmet "se disfarçou como um movimento de educação" e "gradualmente se transformou em uma estrutura operacional sigilosa com o objetivo de transformar a sociedade, assumindo o controle do Estado turco".

"Fetullah Gülen é o líder de uma organização secreta, altamente hierárquica e antidemocrática (o chamado movimento Hizmet) que tentou o mais violento ataque terrorista da história turca na noite de 15 de julho de 2016", diz o texto.

De acordo com a nota, seus membros "pretendem se infiltrar e ampliar sua influência econômica e política global" e constituem uma ameaça à segurança da Turquia e dos outros países onde operam.

Segundo juristas, não há critérios objetivos para determinar se uma organização é terrorista. No caso de sanções, o Brasil segue as listas do Conselho de Segurança da ONU -- e o Hizmet não consta nelas.

Mas, no caso de extradição, ficará a critério do STF determinar se a acusação contra Ali configuraria crime no Brasil -- ou seja, se integrar o Hizmet equivale a participar de uma organização terrorista, de acordo com a lei brasileira.

"Todo mundo sabe que a Turquia é uma ditadura e que nós não somos um grupo terrorista armado", diz Goktepe. Ele também relata que os turcos que estão nas listas do governo como simpatizantes do Hizmet não conseguem renovar passaporte nem sequer entrar no consulado turco em São Paulo.

Declarações de apoio

No pedido de libertação de Sipahi, fazem declarações favoráveis a ele o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, o rabino Michel Schlesinger, da Congregação Israelita Paulista, e o cônego José Bizon, da Arquidiocese de São Paulo.

"Por meio de suas representações diplomáticas, o governo da Turquia não poupa esforços para atingir pessoas e instituições do Hizmet no exterior", diz FHC na declaração. Ele afirma que a fundação que leva seu nome foi procurada, assim como outras instituições, para cancelar cursos em parceria com o CCBT.

O sociólogo Sérgio Fausto, superintendente executivo da Fundação FHC e membro do conselho consultivo do CCBT, disse à reportagem que a acusação contra Sipahi "beira o absurdo" e que caracterizar o centro cultural como terrorista é uma "piada de mau gosto".

"É o Estado turco produzindo fake news para fazer uma perseguição sem paralelo contra aqueles que imagina que sejam seus inimigos políticos", afirma.

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