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A União Europeia (UE) ameaçou nesta terça-feira (26), impor controles mais rígidos na exportação de vacinas da empresa britânico-sueca AstraZeneca-Oxford e da americana Pfizer enquanto o contrato de fornecimento do imunizante não for cumprido. O bloco também prometeu processar as duas fabricantes de imunizantes, que anunciaram cortes no fornecimento.
A presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, disse ontem que os fabricantes de vacinas "devem cumprir suas promessas e obrigações", depois que a americana Pfizer anunciou na semana passada atrasos na entrega do imunizante. O Reino Unido e países emergentes reagiram e a divergência expôs a disputa internacional pelos vacinas.
Em reunião no Fórum Econômico Mundial feita por videoconferência ontem, Ursula disse que a UE estabelecerá um "mecanismo de transparência nas exportações de vacinas que busca identificar os embarques de doses produzidas na Europa para fora do bloco". Ela argumentou que a UE investiu dinheiro na empresa britânica desde o início do desenvolvimento do imunizante para garantir que a produção aumentasse antes mesmo que houvesse uma autorização para que ela fosse entregue.
A AstraZeneca afirmou que não cumpriria a meta de entregar 100 milhões de doses que prometeu aos europeus no primeiro trimestre deste ano. A previsão de entrega agora é de 50 milhões. A empresa culpou a capacidade reduzida em uma de suas unidades de produção europeias. A vacina ainda não foi aprovada pelas autoridades de saúde da UE - a previsão é ter o sinal verde no fim deste mês -, mas o bloco de 27 países esperava receber ao menos 80 milhões de doses em março.
"Em razão das cadeias produtivas globais, a saúde dos nossos cidadãos e a recuperação econômica global andam de mãos dadas. As empresas precisam cumprir suas obrigações", disse a presidente da Comissão Europeia.
Líderes do bloco tem sido pressionados por causa da rapidez das campanhas do Reino Unido e nos EUA. Os britânicos, que já imunizaram pelo menos 6,8 milhões - mais de 10% da população -, receberam vacinas Pfizer/BioNtech e AstraZeneca-Oxford. A fábrica da Pfizer que fornece vacinas para o Reino Unido fica na Bélgica.
A UE deve fechar a questão até sexta-feira. Uma das propostas prevê só monitorar a exportação e não adotar de forma imediata um bloqueio às vendas para fora do bloco. A comissária de Saúde da UE, Stella Kyriakides, disse que empresas que fabricam vacinas no bloco terão de, a partir de agora, "fornecer uma notificação antecipada sempre que desejarem exportar vacinas para outros países".
O ministro da Saúde da Alemanha, Jens Spahn, defendeu a ideia e diz que o bloco tem de receber uma "quantidade justa" de doses. "Posso entender que existam problemas de produção, mas isso então deve afetar a todos da mesma maneira", disse Spahn. "Não se trata de Europa primeiro, mas sim de uma quantidade justa da Europa."
A chanceler alemã, Angela Merkel, indicou que a tensão entre os líderes do bloco aumentou após a decisão nos EUA de adotar medidas para impedir que vacinas sejam exportadas. "Os EUA têm um ato de guerra em vigor sobre a exportação de vacinas e, em alguns casos, sobre suprimentos importantes para vacinas", disse.
O Reino Unido, que deixou a UE no primeiro dia deste ano, reagiu. "Pediria a todos os parceiros internacionais para serem de fato colaborativos e trabalhar juntos", disse Matt Hancock, ministro da Saúde britânico durante o fórum. "O protecionismo não é a abordagem certa no meio de uma pandemia."
Como os britânicos, países emergentes protestaram. O presidente da África do Sul, Cyril Ramaphosa, pediu às nações desenvolvidas que não acumulem excedentes de vacinas. "Os países ricos do mundo adquiriram grande quantidade de doses. Alguns adquiriram até quatro vezes mais do que sua a população precisa, com a exclusão de outros", afirmou.
Ramaphosa, que preside a União Africana e o país que já registrou quase metade das mortes por coronavírus do continente, disse que o mundo precisava daquelas doses excedentes.
As nações mais ricas já encomendaram 2,2 bilhões de doses acima do que precisam para imunizar as suas populações.
A francesa Sanofi anunciou ontem que vai ajudar a Pfizer e a BioNTech a envasar suas vacinas contra a covid-19 e deve condicionar mais de 100 milhões de doses destinadas à UE.
Vacinação no Brasil
Na avaliação do epidemiologista Paulo Lotufo, professor da Faculdade de Medicina da USP, a medida anunciada pela União Europeia aperta o "cerco" ao Brasil, que tem contrato para obter a vacina da AstraZeneca.
O médico afirmou que a pressão da UE não é diferente da adotada pelos EUA sobre as vacinas da Pfizer e da Moderna. Segundo Lotufo, enquanto isso, o Brasil tem "esnobado" a vacina russa Sputnik V e ainda não avançou em negociações com a Janssen e NovaVax.
Para o infectologista Julio Croda, que é pesquisador da Fiocruz, os países ricos com capacidade de desenvolver o imunizante serão privilegiados. "As nações vão ter a oportunidade de vacinar antes suas populações, principalmente quando comparados com países que não têm capacidade de produzir nenhuma vacina nem fazer o envasamento", afirma.
Mas Croda minimiza o impactos da decisão do bloco europeu para o Brasil. Segundo ele, a maioria dos países depende do IFA (Insumo Farmacêutico Ativo), substância necessária para produzir os imunizantes, vindo da China. "Nossa produção e nossa compra não estão relacionadas com a Europa."
A Fiocruz pretende importar um novo lote de vacinas prontas para a covid-19 do Instituto Serum, na Índia, parceiro da AstraZeneca-Oxford. As novas doses se juntarão às 2 milhões que chegaram da Índia na sexta-feira. O novo lote do imunizante ainda está em negociação e, por isso, ainda não há uma data nem quantidade definida.
O epidemiologista Seth Berkley, que chefia a Aliança Global pela Vacinação (Gavi), uma das organizações que tenta garantir o fornecimento de doses aos países pobres, disse que é preciso "consenso para manter a vasta maioria de trabalhos realizados por meio de mecanismos multilaterais e não bilaterais".
Prejuízos
Na semana passada, o diretor-geral da Organização Mundial da Saúde (OMS), Tedros Adhanom, afirmou que o acesso desigual de vacinas é uma "falha moral catastrófica". A entidade também reitera que o nacionalismo serve a objetivos políticos de curto prazo, mas não para o interesse econômico de médio e longo prazos de cada país.
Um levantamento encomendado pela Câmara de Comércio Internacional (ICC) revelou que mesmo que as economias avançadas vacinem suas populações, os prejuízos que virão caso as nações mais pobres não sejam imunizadas poderiam chegar a US$ 9 trilhões. "Isso é muito mais do que US$ 38 bilhões que custaria para fabricar e distribuir as vacinas internacionalmente", disse o documento que derruba a tese de que compartilhar imunizantes seria uma forma de caridade.