Ditador Kim Jong-un é neto do fundador da Coreia do Norte Kim Il-sung| Foto: KCNA VIA KNS/ AFP

Por que um país tem uma constituição?

CARREGANDO :)

Uma das razões é definir as regras de como o governo do país funcionará – coisas como interagir com os vários ramos, como as leis devem ser criadas e quais qualificações devem ser satisfeitas pelos ocupantes de cargos públicos. É a mesma razão pela qual qualquer organização produz estatutos, por exemplo. 

Uma constituição adequada 

Para aqueles que sabem que o governo pode ser o melhor amigo da liberdade ou seu pior inimigo, há uma razão muito mais importante: colocar o governo em uma caixa. 

Publicidade

Por quê? Porque, historicamente, os governos são responsáveis por muito mais torturas, caos, destruição de propriedades e morte prematura do que qualquer outra instituição humana. Nada chega nem perto – nem mesmo todos os furacões, tornados, vulcões e terremotos combinados. 

Uma constituição deve restringir o poder do governo. Deve fazer isso definindo uma série limitada de deveres e deixando o resto da vida para aqueles que vivem sob sua jurisdição. Deve indicar os direitos dos indivíduos que o governo não deve transgredir. Como expliquei neste artigo, nunca devemos pensar nem nos melhores governos como a fonte dos direitos humanos, mas sim como um protetor dos direitos que os indivíduos pacíficos sempre possuíram. 

Essa segunda razão pode fazer parecer que as tiranias do mundo não se importariam com uma constituição. Se um governo reserva para si o direito ou o poder de fazer qualquer coisa a qualquer momento, qual é o propósito de uma constituição, exceto para dar legitimidade à pretensão? Mas, dificilmente existe um país no mundo que não tenha uma (seja escrita ou não), incluindo Cuba, Venezuela e, sim, talvez o mais vil de todos – a Coreia do Norte. 

Constituição da Coreia do Norte 

Com o presidente dos EUA, Donald Trump, pronto para se reunir novamente com Kim Jong-un, o "Líder Supremo" de Pyongyang, achei que seria interessante dar uma olhada na constituição do Reino Hermit. Com cerca de 8.200 palavras, são apenas algumas centenas de palavras a mais do que a Constituição dos EUA, com todas as 27 emendas, mas muito mais curtas do que as 376.000 palavras da Constituição do Estado do Alabama. 

Leia também:  Secretamente, Rússia ofereceu usina nuclear à Coreia do Norte, dizem autoridades americanas

Publicidade

Entenda que os índices de prestígio do Instituto Fraser e da Heritage Foundation classificam a Coreia do Norte como a pior nação em liberdade econômica. Seu povo infeliz é, de qualquer forma, os escravos e vítimas de um regime corrupto e implacável. 

Alguém poderia supor que a constituição de um país é a lei suprema daquela terra, mas a Coreia do Norte não é exatamente um país "normal". Outro documento intitulado “Dez Princípios para o Estabelecimento de um Sistema Ideológico Monolítico” é pelo menos tão importante quanto a constituição daquele país. Ele contém 65 cláusulas, mas resume-se a esses "princípios" aos quais o título se refere e que todo norte-coreano deve memorizar: 

  1. Devemos dar tudo de nós na luta para unificar toda a sociedade com a ideologia revolucionária do Grande Líder Kim Il-sung [fundador da nação comunista e avô de Kim Jong-un]. 
  2. Devemos honrar o camarada do Grande Líder Kim Il-sung com toda a nossa lealdade. 
  3. Precisamos tornar absoluta a autoridade do camarada do Grande Líder Kim Il-sung. 
  4. Devemos fazer da ideologia revolucionária do camarada do Grande Líder Kim Il-sung nossa fé e fazer de suas instruções nosso credo. 
  5. Devemos aderir estritamente ao princípio da obediência incondicional na execução das instruções do camarada do Grande Líder Kim Il-sung. 
  6. Precisamos fortalecer a ideologia, a força de vontade e a unidade revolucionária de todo o partido, centrando-se no camarada do Grande Líder Kim Il-sung. 
  7. Devemos aprender com o companheiro do Grande Líder, Kim Il-sung, e adotar o estilo comunista, os métodos revolucionários de trabalho e o estilo de trabalho orientado para as pessoas. 
  8. Devemos valorizar a vida política que nos foi dada pelo companheiro do Grande Líder Kim Il-sung, e lealmente retribuir sua grande confiança política e consideração com maior consciência e habilidade política. 
  9. Devemos estabelecer regulamentos organizacionais fortes para que todo o partido, nação e forças armadas se mova como um só sob a única liderança do camarada do Grande Líder, Kim Il-sung. 
  10. Devemos repassar a grande conquista da revolução do companheiro do Grande Líder Kim Il-sung de geração em geração, herdando e completando até o fim. 

Toda essa algaraviada se reduz a isso: nada importa neste país, a não ser o fanfarrão insensato e egoísta de um autocrata sanguinário e sua família lunática. Mas vamos voltar ao assunto principal. 

O melhor da loucura

A atual constituição norte-coreana data de 1972 e contém 166 artigos. Para qualquer um que entenda o que uma constituição deve fazer, ela parece absolutamente de outro mundo. Você pode ler a coisa toda aqui. Achei alternadamente arrepiante, hilariante, entorpecente e, para ser franco, estupidamente estupida. Aqui está uma amostra: 

Publicidade

Começa com uma flagrante falsidade em seu próprio título, Constituição da República Democrática Popular da Coreia. Não há nada "democrático" sobre o documento ou o país. Enquanto tentamos investigar se houve fraude eleitoral nos EUA, na Coreia do Norte eles executam qualquer um que defenda as eleições. 

Depois, prosseguimos para o preâmbulo, que começa por declarar: “A República Popular Democrática da Coreia (RPDC) é uma pátria socialista de Juche que incorpora a ideia e a orientação do grande líder, Camarada Kim II Sung”. O que é “Juche”? 

Como o analista da RPDC Michael Malice explicou em uma entrevista de 2014 com Max Borders, Juche é uma combinação de nacionalismo e "tudo o que você quer dizer" ou, mais precisamente, o que quer que a ditadura lhe diga significa. 

Daqui é só ladeira a baixo 

O preâmbulo declara ainda, e cito textualmente: 

“Camarada Kim II lembrado como alguém que "acredita no povo como no céu" como seu lema, sempre esteve com o povo, dedicou toda a sua vida a eles, cuidou e guiou-os com uma política nobre de benevolência, e tornou toda a sociedade em uma grande e unida família”. 

Publicidade

Sem brincadeira! A tentação de chorar e rir ao mesmo tempo fez-me conjurar uma nova palavra, chorrir. Eu chorri quando li esse trecho. R.J. Rummel, em sua obra-prima de 1994, “Morte pelo governo: genocídio e assassinato em massa desde 1900”, estimou que o trabalho forçado, as execuções e os campos de concentração mataram um milhão de pessoas nas primeiras três décadas de poder de Kim Il-sung. Se isso é "benevolência", imagine o que ele poderia ter feito se tivesse sido realmente desagradável ou se não tivesse morrido em 1994! 

As matanças continuaram inabaláveis sob a cleptocracia de Kim. A fome, resultante diretamente das políticas do governo, custou pelo menos mais um milhão de vidas nos últimos 25 anos. Isso apesar do Artigo 2 da Constituição, que afirma que a Coreia do Norte se esforça para alcançar "a liberdade e o bem-estar das pessoas". 

Leia mais: Coreia do Norte tem 2,6 milhões de ‘escravos modernos’, segundo estimativas

Os artigos 4, 5 e 6 declaram as virtudes dos trabalhadores que se expressam através de “órgãos representativos”, “sufrágio universal” e “votação secreta”. As cédulas são tão secretas na Coreia do Norte que ninguém jamais viu uma – pelo menos não um real que tivesse qualquer consequência significativa. 

O Artigo 8 proclama que "o povo trabalhador é dono de tudo, e tudo na sociedade serve aos trabalhadores". George Orwell escreveu isso? 

Publicidade

Mas espere, tem mais 

O que os comunistas marxistas fazem quando não há mais pessoas ricas (fora do governo) para declarar uma guerra de classes contra eles? Você acha que eles abandonam a guerra de classes? Não na Coreia do Norte. A constituição é carregada de referências à classe – em particular, a alardeada “classe trabalhadora”, que está constantemente disposta contra inimigos imaginários. 

O artigo 12 observa que “o Estado deve aderir à linha de classe, fortalecer a ditadura da democracia popular (seja qual for a contradição) e defender firmemente o poder e o sistema socialista contra todos os atos subversivos de elementos hostis no país e no exterior”. 

É claro que o “socialismo” aparece tantas vezes que perdi a conta. A constituição diz que está comprometida com a "vitória completa do socialismo" e com a "construção do socialismo ao máximo". Esta é uma constituição não para a proteção de direitos, mas para a promoção de algum “ismo” religioso que nunca é claramente definido. 

Leia também:  Coreia do Norte ameaça nunca desistir de armas nucleares

O artigo 20 trata da propriedade. O “povo”, como indivíduos, tem direito a ela? A constituição diz que “os meios de produção pertencem apenas ao Estado e às organizações cooperativas sociais”. Portanto, a resposta é praticamente não. O que exatamente “os meios de produção” são nunca é explicado, então, teoricamente, eles poderiam incluir seus ingredientes para o jantar. O Artigo 21 declara: “Não há limite para a propriedade que o Estado pode possuir”. 

Publicidade

Mas espere! O Artigo 24 diz: “O Estado protegerá a propriedade privada e garantirá sua herança legal”. Isso soa muito bem, mas o mesmo artigo define a propriedade privada como aquela que atende aos “objetivos simples e individuais do cidadão” e que consiste em “distribuições socialistas do resultado do trabalho e benefícios adicionais do Estado e da sociedade”. 

O artigo seguinte promete que “o Estado fornecerá a todas as pessoas trabalhadoras todas as condições para obter comida, roupas e moradia”, exceto, é claro, quando o Estado estiver articulando a fome em massa e a pobreza. O socialismo norte-coreano produz anualmente um dos padrões de vida mais baixos do planeta. As "massas trabalhadoras", declara o Artigo 29 em uma grande mentira, "foram libertadas da exploração e da opressão". 

Uma abundância de promessas 

A lista de coisas que o “Estado” deve fazer é estupefata. A constituição prevê que ela “fortaleça a consciência ideológica e o nível técnico e cultural dos camponeses”. O Estado deve “realizar todas as atividades econômicas priorizando a resolução do problema do desenvolvimento técnico”. O Estado “presta o trabalho de nossos trabalhadores, que não se preocupam com o desemprego, mais alegres e valiosos, para que trabalhem com entusiasmo e criatividade para a sociedade”. O Estado “desenvolverá uma literatura e arte revolucionária e orientada para o Juche, nacional na forma e socialista em conteúdo”. O estado “deve fornecer instalações culturais modernas suficientes para atender às demandas do povo”. O Estado “salvaguardará nossa língua de todas as tentativas de obliterá-la e a desenvolverá para atender às necessidades atuais”. O Estado “deve popularizar cultura física e torná-la um hábito da vida das pessoas para tornar as pessoas totalmente preparadas para o trabalho e a defesa nacional”. 

Leia também:  A promessa era o paraíso. Mas quando chegaram na Coreia do Norte encontraram o inferno

E sim, Alexandria Ocasio-Cortez, o estado “deve consolidar e desenvolver o sistema de serviço médico gratuito universal”. Na Coreia do Norte, se você gosta do seu plano de saúde, pode manter seu plano de saúde. Se você gosta do seu médico, pode ficar com o seu médico. Porque no final das contas, você não tem escolha. 

Publicidade

Eu não não cheguei nem a um terço dos artigos deste documento sem sentido que rotulam cruelmente de constituição. O Estado de Direito e um judiciário em funcionamento são virtualmente inexistentes nesse pesadelo totalitário. Mesmo o ocasional aceno aos direitos individuais é subjugado por toda a concentração de poder arbitrário que a constituição concede a um partido único adorado como se fosse Deus. Talvez o único artigo inócuo ou verdadeiro seja o último, que diz simplesmente: "A capital da RPDC é Pyongyang". 

Se chegar o dia em que os norte-coreanos se levantarem e jogarem fora as correntes da tirania, eles tomarão este instrumento de escravidão e darão o devido fim. Eles vão mergulhar em combustível e acender um fósforo.

*Lawrence W. Reed é presidente da Foundation for Economic Education e autor de “Real Heroes: Histórias Verdadeiras Incríveis de Coragem, Caráter e Convicção” e “Desculpe-me, Professor: Desafiando os Mitos do Progressismo”.

©2019 Foundation for Economic Education. Publicado com permissão. Original em inglês.