"O seu George W. Bush veio aqui, há dois anos, e ninguém o reconheceu."
"Sério?".
"Nem sabiam quem era."
"E se fosse o Nelson Mandela?".
"Também não. Ninguém aqui vê TV. Ninguém pensa em nada além do Omo."
Eu estava conversando com Lale Biwa, membro do povo karo, que habita o Vale do Omo, na Etiópia. Estávamos cercados por cabanas baixas, circulares, feitas de gravetos e com telhado de sapê, em Dus, vilarejo onde ele mora, às margens do rio Omo.
Uma mulher, coberta de miçangas e pulseiras, triturava sorgo em uma pedra enorme ali perto, à sombra. Os homens, alguns empunhando AK-47s, estavam sentados, espalhados em grupos. Crianças pequenas, sem roupa, corriam para lá e para cá. Os cabritos e o gado zanzavam livremente na planície empoeirada. O vilarejo não tem eletricidade, nem água tratada, nem carros. Biwa, que nem sabe quantos anos tem, mas calcula "uns 40", olha à sua volta. "É um lugar bom. O pessoal é verdadeiro", sentencia.
Eu tinha ido ao vale com Will Jones, 45 anos, um empresário inovador do setor turístico, para dar uma espiada na vida de algumas das tribos mais tradicionais da África. "Tenho muito interesse no Omo. É um ecossistema que está em risco, e as comunidades que vivem aqui também estão, mas, ainda assim, é um lugar fascinante", revelou.
Jones vem criando excursões personalizadas para o continente há mais de vinte anos e a sua mais nova empreitada é a Wild Philanthropy, empresa que quer criar um turismo sustentável, com uma troca de benefícios mútuos entre os visitantes e o povo e a terra que querem ver. Ele também é responsável pelo único acampamento permanente no Vale do Omo, próximo ao vilarejo de Biwa.
Essa região do sudoeste da Etiópia abriga sete tribos que convivem em vários níveis de paz umas com as outras. Basicamente uma savana de clima seco, tem o rio Omo correndo ao longo de quase 765 km até desembocar no Lago Turkana, na fronteira com o Quênia. A descoberta de restos mortais humanos de quase 2,5 milhões de anos fez a Unesco nomear o Vale Inferior Patrimônio da Humanidade, em 1980.
Atualmente, porém, a região se encontra à beira do precipício, com a conclusão recente da terceira das cinco represas propostas pelo governo rio acima. As estruturas ameaçam alterar a vida das comunidades que habitam a região e dependem do corpo de água para sobreviverem.
"Este é o segundo ano seguido que a colheita da cheia não vingou. Ninguém se lembra de não ter visto o rio subir antes", explica Jones.
Turismo exploratório
A área também virou vítima do turismo exploratório, geralmente praticado pelo pessoal das cidades grandes, que chega invadindo as aldeias, câmeras em punho, e vai embora deixando uma nuvem de poeira atrás de si. Encontrei um grupo desses em um festival local. Testemunhar a ânsia da busca pelo registro da alteridade me fez refletir nos meus próprios motivos para estar ali. É uma questão com que todos visitante de regiões remotas ou indígenas têm que se reconciliar.
"É meio um circuito de exploração que acontece aqui. E é uma das razões por que cultivamos as relações com o povo local, incentivando o comércio, tentando criar uma troca com benefícios mútuos. E também o motivo de usarmos o rio como rota primária de acesso; através dele chegamos a aldeias que, do contrário, são inacessíveis", prossegue Jones.
Nos seis dias que passamos ali, vimos apenas um barco motorizado que levava suprimentos para uma ONG na região inferior do rio.
Tendo Biwa como guia, seguimos para um vilarejo minúsculo habitado pelos hamar, povo cuja população chega a 45 mil habitantes no vale, conhecido pela destreza pastoral. O local estava lotado de animais. Como em Dus, as moradias são simples, erguidas com gravetos e palha, mas bem organizadas. Os jovens cuidavam do gado e vimos uma mulher tirando a pele de um cabrito, com a ajuda do filho pequeno, que pendurava os pedaços do animal no espaço entre uma AK-47 e o cinturão de munição.
"O fuzil substituiu a lança", contata Jones.
Além das armas de fogo, notei algumas outras adaptações ao mundo contemporâneo. O fato é que, para um lugar sem rede elétrica, as notícias correm com rapidez no vale. Enquanto estávamos na vila hamar, soubemos de uma cerimônia de "salto de boi" que aconteceria ali perto, ritual de iniciação à idade adulta promovido pelas comunidades hamar e karo. Seguimos rumo ao leste.
Ao fim de uma estrada longa e esburacada, nos deparamos com uma aldeia em festa, onde homens e mulheres de idade se protegiam do sol e os rapazes pintavam o rosto de branco e vermelho. As moças, de saias longas, tinham sinos grandes amarrados em volta da panturrilha, o cabelo cacheado coberto de lama vermelha seca. Cada uma levava um pequeno chifre que tocava incessantemente.
Conforme o sol ia se pondo, uma dúzia de touros foi levada para uma clareira e os animais dispostos lado a lado. De repente um jovem, nu, pulou nas costas do primeiro e, dali, foi saltando sobre os outros. Ao alcançar o último, desceu, mas voltou a subir e fez o caminho contrário, repetindo a operação três vezes. Biwa explicou que, se ele caísse, seria uma desgraça que levaria para o resto da vida – mas o garoto não hesitou nem uma vez e, na manhã seguinte, acordaria como homem, com direito de se sentar entre os anciãos.
A cerimônia prosseguiu noite adentro. Fomos embora sob o céu escuro, sem luar, só com o Cruzeiro do Sul brilhando no céu, baixo, o silêncio enchendo o carro.
Rituais
Em um ritual realizado em Dus, 200 homens da comunidade karo se reuniram em um grande semicírculo em um rochedo sobre o rio. A acomodação seguia a ordem dos mais jovens para os anciãos mais velhos.
Um touro estava sendo assado sobre uma fogueira aberta, no meio do grupo. Pequenas porções de carne e gordura eram dispostas sobre folhas arrumadas diante do público. Um pedaço que não consegui identificar foi posto na minha frente; o velho ao meu lado me ofereceu sua faca. Ficou observando enquanto eu cortava a carne misteriosa e sorriu quando levei um naco à boca.
Quando o animal inteiro já tinha sido consumido, um dos anciãos se levantou e começou a falar.
"Está rezando, pedindo para o rio subir", traduz Biwa.
"Eles não sabem da represa?", pergunto.
"É difícil para eles entender", responde ele.
Na manhã seguinte, partimos antes que o calor se tornasse insuportável. Durante sete horas, só vi os arbustos cerrados ao longo das margens. De vez em quando surgia um bando de crianças brincando na água infestada de crocodilos e podia vislumbrar um vilarejo ou outro através da folhagem. Os babuínos escalavam as margens íngremes. No posto de inspeção minguado de Omorate checaram nossos passaportes, pagamos a propina local e seguimos em frente.
"Daqui até o Lago Turkana é meio que uma terra de ninguém", informa Jones.
A vegetação cerrada cede lugar à planície mais aberta. As vilas maiores do povo daasanach começam a surgir ladeando as margens. São diferentes das outras que já tinhamos visto nas plataformas a três metros do solo, construídas para proteger as plantações de sorgo da cheia anual – que está arriscada a não ocorrer por causa do rio represado na região superior.
Acampamos na parte alta. Os moradores não precisaram de convite para se aproximar e acabamos nos envolvendo com a rotina diária. As pirogas, lotadas de gente, cruzavam o rio de lá para cá o tempo todo; mesmo bem depois de o sol se pôr, ouvíamos vozes na água.
Em um passeio que fizemos rio abaixo, vi que ele começou a se fragmentar; a seguir, os pelicanos passaram a surgir em bandos e, em seguida, o Lago Turkana surgiu na nossa frente. Vasto, mais parecia um mar interno. Era impressionante.
O meio ambiente ali também estava ameaçado. "Dizem que o Turkana pode baixar mais de seis metros por causa da represa. E ninguém sabe quais os efeitos disso no delta", comenta Jones.
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