Sob o sol que batia o azul cobalto do mar do Caribe, a embarcação parecia pequena no horizonte. Ela se aproximou. Mas a tripulação do Asheena não deu atenção. “Nós estamos procurando o nosso peixe vermelho como de costume e pensávamos que eles estivessem fazendo o mesmo", disse Jimmy Lalla, membro da tripulação de um barco que jogara redes nas águas de Trinidad e Tobago, em abril, a poucos quilômetros da costa venezuelana.
O outro barco continuou se aproximando. "Precisa de ajuda?", Lalla perguntou quando a embarcação encostou. Um homem baixo e musculoso saltou a bordo, gritando em espanhol e brandindo uma pistola. “Então compreendemos. Eram piratas.”
Nova era de pirataria
Séculos depois que os canhões de Barba Negra silenciaram e a Jolly Roger, a bandeira dos piratas, desapareceu dos portos regados a rum no Caribe, a região está enfrentando uma nova era de pirataria, menos romantizada.
Crises políticas e econômicas explodiram da Venezuela para a Nicarágua e o Haiti, o que desencadeou anarquia e criminalidade. À medida que o estado de direito se desfaz, certos locais no Caribe, dizem os especialistas, estão se tornando cada vez mais perigosos.
Segundo os observadores, os crimes parecem estar acontecendo com cumplicidade ou envolvimento direto de funcionários corruptos, particularmente nas águas da colapsada Venezuela.
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"É um caos criminoso ao longo da costa venezuelana", disse Jeremy McDermott, co-diretor da Insight Crime, uma organização sem fins lucrativos que estuda o crime organizado na América Latina e no Caribe.
Dados abrangentes sobre pirataria são escassos para a América Latina e o Caribe. Mas um estudo de dois anos realizado pela Oceans Beyond Piracy, uma organização sem fins lucrativos, registrou 71 grandes incidentes na região em 2017. Isto inclui roubos de navios mercantes e ataques a iates. É um aumento de 163% em relação ao ano anterior. A grande maioria aconteceu em águas caribenhas. Os incidentes variam de assaltos em alto mar a ataques bárbaros, dignos de piratas do século 17.
Ataques hediondos
Em abril, homens mascarados tomaram quatro barcos de pesca guianenses que estavam a 48 quilômetros da costa. As tripulações, segundo relatos dos sobreviventes, foram encharcadas com óleo quente, atacadas com facões e atiradas ao mar. Depois, os barcos foram roubados. Das 20 vítimas, cinco sobreviveram. As demais morreram ou estão desaparecidas.
O presidente da Guiana, David Granger, condenou o ataque e o qualificou como um “massacre”. As autoridades do país sugeriram que isto poderia estar ligada à violência de gangues no vizinho Suriname.
"Disseram que tomariam o barco e que todos cair fora", disse Deonarine Goberdhan, um dos sobreviventes, à Reuters. Depois de ter apanhado e ser jogado no mar, disse: "Tratei de manter minha cabeça fora da água para que pudesse respirar. Bebi muita água salgada. Olhei para as estrelas e a lua. Apenas esperei e rezei".
Caos na costa da Venezuela
Houve relatos de pirataria nos últimos 18 meses perto de Honduras, Nicarágua, Haiti e Santa Lúcia. Mas, em nenhum lugar o surto foi mais notável, segundo os analistas, do que na costa da Venezuela.
A crise econômica no país sul-americano está elevando a inflação para 1.000.000% neste ano, segundo o Fundo Monetário Internacional (FMI) e fez com que alimentos e remédios se tornassem escassos. A desnutrição está se espalhando; as doenças se expandem; as redes de distribuição de água e energia falham devido à falta de pessoal treinado e de peças sobressalentes. Integrantes da polícia e das forças armadas estão abandonando seus postos, já que seus salários não valem quase nada. Sob o governo socialista do presidente Nicolás Maduro, a repressão e a corrupção aumentaram.
A situação está obrigando alguns venezuelanos a tomar medidas desesperadas.
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Uma autoridade portuária venezuelana, que falou sob a condição de anonimato para tratar da corrupção oficial, disse que funcionários da guarda costeira venezuelana estão abordando embarcações ancoradas e exigiram dinheiro e comida. Disse que barcos comerciais, em resposta, ancoram cada vez mais longe da costa e desligam seus motores e luzes para evitar serem vistos à noite.
Mas isto nem sempre funciona. Em julho, uma embarcação da Conferry, que presta serviços de carga para as ilhas próximas à costa venezuelana, foi atacada por três homens que brandiam facas e armas perto do porto de Guanta. Quatro membros da tripulação ficaram amarrados por horas, enquanto comida e eletrônicos eram roubados.
Em janeiro, em Puerto La Cruz (Nordeste da Venezuela), sete assaltantes armados abordaram um petroleiro ancorado. Amarraram o guarda da embarcação e depois roubaram os estoques.
Incidentes similares foram relatados nos meses seguintes, segundo a divisão de serviços de crimes comerciais da Câmara Internacional de Comércio, sediada em Londres.
Problemas em Trinidad
Trinidad e Tobago, uma ilha de 1,4 milhão de habitantes próxima à costa venezuelana, há muito tempo se preocupa com o crime que emana de do país vizinho. Desde a década de 1990, contrabandistas de drogas transportam maconha e cocaína colombiana de portos venezuelanos para Trinidad e de lá para outros países caribenhos e mais distantes.
Tráfico e pirataria, apontam os moradores, estão se expandindo e se tornando mais violentos. Cinco pescadores de Trinidad, no porto de Cedros (Sul do país), disseram em entrevistas, sob condição de anonimato e temendo por sua segurança, que foram testemunhas da chegada frequente nos últimos meses de embarcações venezuelanas contrabandeando pistolas militares e drogas, bem como mulheres e animais exóticos.
"Às vezes, esses venezuelanos estão dispostos a trocar armas e animais por comida", disse um pescador de 41 anos.
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Outro falou que foi mantido por horas em janeiro por piratas que falavam espanhol, enquanto seu irmão foi contatado para pagar um resgate de US$ 500.
Um navio da guarda costeira de Trinidad foi enviado para patrulhar as águas este ano, depois de vários grandes incidentes relacionados ao contrabando e pirataria. Os moradores locais dizem que os criminosos simplesmente esperam que a patrulha passe e, então, agem. Procurados para comentar o assunto, as autoridades de Trinidad e Tobago não responderam a repetidos pedidos de informação.
Políticos da oposição, entretanto, estão denunciando um aumento na pirataria. Também dizem que o fluxo de armas automáticas da Venezuela, algumas das quais parecem vir de arsenais militares, está contribuindo para o aumento da taxa de homicídios em Trinidad.
"Isto me lembra como os problemas começaram na costa Leste da África", disse Roodal Moonilal, parlamentar do partido do Congresso Nacional Unificado, da oposição, referindo-se ao aumento acentuado nos sequestros de navios na costa da Somália, um país sem lei, há vários anos.
O que estamos vendo - a pirataria e o contrabando - é o resultado do colapso político e econômico da Venezuela.
Para os que ganham a vida navegando nas águas quentes do Caribe, a pirataria é uma nova fonte de medo. Atualmente, os moradores estão pescando mais perto da costa e, às vezes, à noite para evitar o risco de ataques.
Terror
Na tarde de abril, quando o Asheena foi abordado, Lalla disse que ficou aterrorizado. "O homem que falava em espanhol apontou a arma para mim e para a água. Sabia. Queria que pulasse", disse ele.
Então Lalla pulou ao mar. O primeiro imediato, Narendra Sankar, o seguiu momentos depois. Os homens nadaram em direção a uma plataforma de petróleo quando Sankar sentiu cãibras. “Já havia chegado à plataforma, mas tive de voltar para ajudá-lo", disse Lalla. "Ele estava se afogando."
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Eles viram como os piratas se apoderaram da embarcação, equipada com dois caros motores de popa. O capitão, Andell Plummer, ainda estava a bordo. Os dois homens foram resgatados da água por um barco de pesca que passava. Quando relataram o ataque às autoridades, disse Lalla, elas afirmaram: "Não temos barco para ir atrás deles; não podemos fazer nada".
Não houve nenhum sinal de Plummer desde então, dizem os homens. O Ministério de Segurança Nacional de Trinidad não respondeu a um pedido de informações sobre este caso.
"Meu menino, eles o levam!" disse o pai do capitão, Deoraj Balsingh, ao lado de um cais lamacento de Trinidad, cercado por barcos. "Não sabemos se ele está vivo ou se está morto."