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Uma obra de arte invisível e com um som ‘perturbador’ relembra a Áustria de passado nazista

Susan Philipsz na Heldenplatz, ou Praça dos Heróis, em Viena, 12 de março de 2018. | DAVID PAYR/NYT
Susan Philipsz na Heldenplatz, ou Praça dos Heróis, em Viena, 12 de março de 2018. (Foto: DAVID PAYR/NYT)

Quatro notas musicais um tanto funestas tomam conta da Heldenplatz, ou Praça dos Heróis, no centro de Viena. Os sons da obra de arte invisível, que lembram a voz humana, saem de um antigo palácio dos Habsburgo, e são levados no vento para além das construções, chegando ao outro lado do imenso espaço público.  

"É muito interessante nessa praça tão movimentada. Tão sutil! Mas talvez seja mesmo necessário em um espaço tão frenético", comenta Peter Larndorfer, 34 anos, que passava por ali pouco depois da inauguração do trabalho.  

Durante os próximos oito meses, a artista escocesa Susan Philipsz estará usando o som perturbador do deslizar de dedos sobre as bordas molhadas de copos para lembrar o visitante da anexação da Áustria pela Alemanha nazista, há 80 anos. Em 12 de março de 1938, os austríacos comemoraram a invasão das tropas alemãs no país; três dias depois da marcha, milhares de pessoas se reuniam na Heldenplatz para ver Hitler, que saudou a multidão da sacada do palácio.  

As imagens da doutrinação nazista presente no discurso triunfante à multidão austríaca em êxtase são famosas, e hoje aceitas como retrato realista da reação pública na época, mas só no início da década de 90 que o país admitiu oficialmente ser perpetrador voluntário dos crimes nazistas. Após a guerra, falava-se da Áustria como "a primeira vítima" de Hitler; entretanto, muita gente considera o "Anschluss", como a incorporação austríaca ao Terceiro Reich é conhecida, como um assunto complicado.  

"A primeira leva para Dachau ocorreu duas semanas após o discurso. Eu quis honrar a lembrança de todos aqueles que desapareceram, dar-lhes uma voz. Afinal, dizem que o som no vidro é muito semelhante ao da voz humana", explicou Philipsz, ganhadora do Prêmio Turner em 2010, a caminho do último teste de som, em nove de março.  

"The Voices" foi encomendado pela House of History Austria, um museu planejado que conta a história da democracia austríaca (e suas interrupções). Está previsto para ser inaugurado em novembro, na época do centenário do nascimento da república austríaca a partir dos horrores da Primeira Guerra Mundial e o colapso do Império dos Habsburgo.  

Para a diretora Monika Sommer, "a sutileza e a fragilidade de 'The Voices' combinam com a maneira através da qual o museu quer ajudar o país a olhar para o próprio passado.

“Não queremos culpar ninguém, apenas fazer uma análise sóbria e lúcida do que aconteceu"

Tarefa difícil

Porém, afirma que essa é uma tarefa que está se tornando cada vez mais difícil. "Em termos gerais, estamos vendo o antissemitismo e a xenofobia voltando a se espalhar."  

Em dezembro, o Partido Popular, conservador, e o Partido da Liberdade, de extrema-direita, formaram o novo governo austríaco, eleitos defendendo uma política de anti-imigração em resposta à crise de refugiados na Europa. A coalizão oficialmente afirma que a Áustria cometeu crimes nazistas e denuncia o antissemitismo, mas um político afiliado ao Partido da Liberdade renunciou em fevereiro por causa do escândalo de um livro de canções antissemitas usado pela antiga fraternidade universitária do qual fazia parte; além disso, os seguidores no Facebook do líder do partido, Heinz-Christian Strache, recentemente o criticaram por falar da cumplicidade austríaca com o regime nazista.  

Vale notar que o governo do chanceler Sebastian Kurz ainda não decidiu se vai continuar financiando o House of History – inaugurado pelo Partido Social-Democrata, de tendência esquerdista, depois de décadas de debate – quando o orçamento atual do museu expirar, em dezembro de 2019. "A discussão atual sobre o futuro do museu mostra o quanto ainda é difícil falar da história nacional e reavaliá-la", afirma Sommer.  

"A arte de Susan não é explicitamente política, mas isso não significa que seja apolítica", reflete Kasper König, diretor e curador de um museu alemão que prestou consultoria em relação à instalação. Philipsz afirma que nunca teve a intenção aberta de ser uma artista pública. Tendo participado de um coral na infância e feito um curso de escultura, ela se mostra interessada "no que ocorre quando se projeta o som no espaço" – ao agente, ao espaço e ao receptor.  

E elogia o museu por lidar com toda a política de bastidores, deixando-a livre para fazer seu trabalho. Visitou o museu pela primeira vez em outubro, e logo em seguida definiu o cristal como meio de expressão, em parte graças aos candelabros imponentes do palácio.  

Método

"Mozart passou bastante tempo em Viena, e compôs obras para a harmônica de vidro", informa. Os aparelhos de rádio tinham elementos de cristal nos anos trinta, e ele foi um instrumento vital de doutrinação para Hitler. "E, é claro, teve a Kristallnacht", completa, referindo-se à Noite dos Cristais, em nove de novembro de 1938, quando sinagogas e lojas pertencentes aos judeus foram vandalizadas, na Alemanha e na Áustria. Foi uma erupção de ódio que ela também quis que ficasse marcada por "The Voices".  

O museu queria uma obra que fizesse o público refletir sobre o discurso que Hitler fez na sacada, mas temia colocar uma escultura no local. Ao contratar uma artista sonora conseguiu resolver o problema, embora a ideia original de colocar alto-falantes onde o Führer se pronunciou não foi vista com bons olhos por Philipsz, pois chamaria muita atenção para a sacada.  

"Passaria uma ideia errada; eu não queria que o destaque fosse a voz de Hitler, mas sim as de todas as pessoas que se reuniram ali ao longo das décadas".

Por isso, colocou alto-falantes do outro lado da praça também – mas, com isso, "The Voices" só pode ser ouvido durante dez minutos, duas vezes por dia, às 12h30 e às 18h30, por causa dos vizinhos.  

"Eu pessoalmente acho o trabalho um pouco discreto demais, mas, mesmo assim, teria sido considerado inconcebível na Áustria até pelo menos os anos 90. Essa tentativa de reflexão nacional pelo menos serve para forçar a extrema-direita a aceitar a existência de um tabu contra o antissemitismo e a negação do Holocausto", diz G. Daniel Cohen, historiador da Universidade Rice, de Houston, que está atualmente em Viena para escrever um livro sobre a atitude em relação aos judeus na Europa pós-guerra.  

Na terça, no horário do almoço, cerca de 50 pessoas ouviam a obra ao lado da estátua do Arquiduque Karl, um dos heróis homenageados na Heldenplatz. "É uma experiência que comove. Você vê a sacada, pensa no delírio que foi o 'Anschluss'... o som meio que resume tudo", descreve Dagmar Friedl-Preyer, assistente social de 57 anos que foi à praça para conferir a novidade. Para seu amigo, o aposentado Josef Huber, muita gente deve ouvir "The Voices". "Obviamente o problema são aqueles que não querem ter nada a ver com o que ela representa. Essas pessoas não vão vir para ouvir."  

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