Em uma antiga base da Guerra Fria, soldados alemães e holandeses, servindo juntos no mesmo batalhão de tanques, em formação, atentos, repetiam seu grito de guerra nos dois idiomas.
"Nós lutamos...", começava o comandante. "... pela Alemanha!", completava o grupo, a uma só voz. "Nós lutamos...", repetia o líder. "... pela Holanda!", seus soldados terminavam a frase. Mas não gritavam "pela Europa". Não por enquanto.
Entretanto, a unidade – primeira no continente composta de tropas binacionais – é um passo inicial importante rumo a uma cooperação militar europeia mais significativa. Proposta a princípio após a Segunda Guerra Mundial, a ideia de um Exército europeu é tão antiga quanto a União Europeia, ainda que não tenha se tornado realidade.
Só que agora o conceito ganhou nova urgência, dada a ameaça do governo Trump de retirar a garantia de segurança do continente se seus países não investirem mais em defesa. Em uma conferência de alto nível de segurança, em meados de fevereiro, as diferenças entre os EUA e a Europa se escancararam, deixando muitas autoridades do Velho Mundo se sentindo abandonadas à própria sorte.
"Está todo mundo falando da criação de um Exército europeu, mas somos os pioneiros", gaba-se o tenente-coronel Marco Niemeyer, alemão comandante do batalhão.
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Ainda que alguns líderes europeus poderosos estejam falando mais e mais alto sobre um órgão militar continental, o momento político é delicado, com a ascensão de partidos populistas em vários países e em meio a um nacionalismo crescente ameaçando a coesão geral, o que torna ainda mais complicada a perspectiva de renúncia da soberania em uma questão tão delicada quanto a segurança nacional. Além disso, os desafios práticos a ser superados para uma cooperação de defesa europeia com credibilidade são imensos.
Para que haja qualquer progresso, os analistas concordam que a Alemanha, maior país do continente, e também o mais rico, tem de fazer mais, inclusive superar a relutância desenvolvida no pós-guerra de liderar as questões estratégicas. Seu exército já tem soldados e equipamentos de menos e enfrenta escassez de praticamente tudo, até de roupas térmicas que, em alguns casos, está sendo reclassificada como "funcional" para poder ser reutilizada.
Nesse cenário, o 414º Batalhão de Tanques se tornou uma referência em relação ao que deve ser feito para a conquista de uma maior eficiência e cooperação mais ampla.
A base militar de Lohheide resume o histórico complicado do continente: construída pelos nazistas, nos anos trinta, e usada pelos Aliados durante a Guerra Fria, quando a Alemanha Ocidental ainda era o Estado limítrofe da OTAN a oeste, ela hoje abriga um experimento de defesa pós-nacional.
O batalhão é alemão, mas 25 por cento dos soldados são holandeses; os tanques são teutônicos, o sistema de rádio é neerlandês, e o idioma de comando é cada vez mais frequentemente o inglês. Alemães e holandeses geralmente seguem no mesmo veículo.
Valores europeus
"Já operamos com muito mais união do que poderiam supor os políticos. Não pensamos em termos nacionais; os valores que defendemos são europeus. A fronteira que protegemos não é entre a Holanda e a Alemanha, mas sim a divisa oriental da OTAN", frisa o comandante Niemeyer.
Se ele morreria pelo continente? "Sim", garante.
Porém o contraste entre o idealismo exibido no quartel e a ausência de liderança política continua gritante, como comentam analistas e especialistas em defesa, principalmente em Berlim.
"Há um descompasso gigantesco entre o aspecto tático-militar e o nível político", afirma Jan Techau, diretor do Programa Europeu do Fundo Alemão Marshall, em Berlim.
"A vida que levamos nesses últimos 70 anos só é possível por causa das garantias de segurança norte-americanas que recebemos, a maioria de graça. É por isso que não somos uma Ucrânia da vida, vivendo sob a influência de uma esfera russa. O fato é que a questão que Trump impôs aos europeus faz sentido; queremos viver em liberdade, sim, mas será que estamos preparados para pagar por isso?", questiona Techau.
Ao fim da Guerra Fria, a Alemanha tinha 500 mil soldados, mais de três mil tanques e gastava 2,4 por cento do PIB com defesa; hoje, são 182 mil soldados e 325 tanques, e um investimento de 1,3 por cento.
Apesar de assinar um compromisso com os outros membros da OTAN para alcançar o equivalente a dois por cento do produto interno bruto até 2024, a Alemanha baixou o alvo para 1,5 por cento.
A ministra da defesa alemã, Ursula von der Leyen, admitiu em entrevista que 25 anos de redução enfraqueceram a estrutura, mas insiste que já atingiram "o fundo do poço" e estão "no caminho certo".
"Os gastos militares vêm crescendo há cinco anos seguidos, chegando a 36 por cento", completa. A Alemanha é o segundo país que mais contribui com verba e tropas para a OTAN, mas, segundo os críticos, isso não basta.
Necessidade de cooperação
Segundo os números publicados no ano passado, os últimos disponíveis, em média apenas um em cada três caças Eurofighter e helicópteros de combate voa. Em janeiro, apenas três dos seis submarinos e bem menos da metade dos 24 aviões de transporte A400M estavam em ordem e prontos para uso.
"Em todas as áreas há falta de material", escreveu em fevereiro Hans-Peter Bartels, comissário parlamentar para as Forças Armadas da Alemanha.
O 414º Batalhão reflete a necessidade de uma cooperação europeia: a Alemanha tem soldados de menos, aos holandeses faltam tanques, mas, juntos, conseguem formar uma unidade. "São duas peças frágeis que suprem uma à outra", afirma o respeitado blogueiro militar Thomas Wiegold.
Em entrevista, Bartels disse acreditar que um exército europeu – ou "um exército de europeus", como prefere chamar – é o futuro, mas que levará uma geração para ser formado. "Iniciativas como o 414º Batalhão são 'ilhas' que precisam se multiplicar para se transformar em uma estrutura de defesa continental de credibilidade; além disso, teria de incluir um conselho de segurança que tomasse as decisões a respeito do uso das forças, e um comando unificado", opina. Tudo isso é um desafio, e não só porque a Alemanha simplesmente não se sente ameaçada.
Pesquisas recentes revelam que 70 por cento dos alemães não veem a Rússia como ameaça. Entre eles, o número dos que acham que Vladimir Putin e Xi Jinping vão "fazer a coisa certa" é três vezes maior do que os que apostam em Trump, considerado perigo ainda maior que a Coreia do Norte.
"Não conseguimos explicar ao povo alemão a profundidade das mudanças geopolíticas, e quanto elas alteram o papel do país", admite Norbert Röttgen, parlamentar do partido conservador do qual a chanceler Angela Merkel faz parte.
Uma razão para o grande sucesso do 414º Batalhão é o fato de os alemães setentrionais e os holandeses serem culturalmente muito próximos. E, apesar das negociações entre Merkel e o francês Emmanuel Macron para a criação de um "verdadeiro Exército europeu", a experiência de uma brigada franco-alemã na Alsácia é bem diferente. "Os alemães não falam francês e os franceses não falam inglês. Mais significantes, entretanto, são as diferenças das culturas estratégicas entre as duas nações, ainda que haja vontade política para um engajamento", descreve Bartels.
Para fazer um exército continental funcionar, a Alemanha terá de superar a cautela inata que desenvolveu desde o fim da Segunda Guerra Mundial em relação à intervenção militar. "Durante muito tempo o país teve essa visão de que não deveria se envolver nos conflitos por causa da nossa história, mas isso está mudando. É justamente por causa da nossa história que temos de nos envolver", conclui a ministra von der Leyen.
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