Essa é a história de um manuscrito de 750 páginas que passou de mão em mão, cruzou ilegalmente uma fronteira, foi primeiro ignorado e, de repente, espalhou-se por mais de 20 países. De seu autor, não se sabe muito, nem sequer o nome real.
É essa a história de "A Acusação - Histórias Proibidas Vindas da Coreia do Norte", assinado pelo pseudônimo Bandi, livro de um autor do país socialista, contrabandeado para a Coreia do Sul.
É um conjunto de sete contos -uma seleção de histórias do manuscrito original- que denunciam a vida sob o regime e serão lançados no Brasil na última semana de março.
O livro conseguiu sair da Coreia do Norte graças aos esforços do ativista de direitos humanos Doo He-youn, da Coreia do Sul, em uma história cheia de reviravoltas. Um dia, o militante foi informado de que uma mulher tentara fugir do país socialista e fora detida por autoridades chinesas. E guardas queriam um suborno para não devolvê-la ao regime.
A mulher era parente de Bandi, que tentara fazer com que ela viajasse com o manuscrito. Já livre, ela procurou He-youn para contar do livro -e deu ao ativista o nome real do autor e seu endereço.
O ativista tinha, por acaso, um amigo que planejava visitar a família na mesma cidade onde Bandi vive. E pediu para que ele desse um jeito de trazer a obra, cujas folhas vieram escondidas dentro das "Obras Seletas" de Kim Jong-Il, ditador norte-coreano morto em 2014.
Publicação
He-youn tentou publicá-lo em editoras da Coreia do Sul, mas -como era de se esperar, já que não era possível ter certeza de que a autora era real- a maioria recusou, e o livro acabou publicado apenas em um site de direita, sem gerar repercussão. Por via das dúvidas, mesmo os nomes de locais e personagens foram alterados para publicação.
A virada veio quando "A Acusação" foi publicada na França, pela Philippe Picquier, em 2016. A tradução francesa foi parar nas mãos da agente literária nova-iorquina Barbara Zitwer, especializada em literatura coreana, que planejava vendê-lo na Feira do Livro de Londres. Mas os acontecimentos anteciparam o processo.
"Eu estava com o livro havia alguns meses, mas a Coreia do Norte fez mais um teste nuclear e eu vi que aquele era o momento", diz ela.
"A Grove, nos EUA, e a Serpent's Tail, no Reino Unido, fizeram ofertas para o livro não ir a leilão. E nas duas semanas seguintes vários outros países compraram. Era como um 'Doutor Jivago', um livro contrabandeado e brilhante."
De lá para cá, a obra já saiu em grandes mercados, como Alemanha, Espanha e Itália, além de Grécia, Turquia e outros países. O pseudônimo escolhido significa vaga-lume.
Biografia
Não foi revelado muito sobre Bandi, com medo de que seja identificado. Mas, segundo relatos das pessoas envolvidas na publicação do livro, nasceu em 1950 e escreveu sua obra nos últimos 30 anos, começando nos anos 1990, quando o país era governado por Kim Jong-Il.
Os relatos se referem ao autor ora como homem, ora como mulher -então não é possível nem saber exatamente o seu gênero.
Bandi é membro do Comitê Central da Liga de Escritores Chosun, associação de escritores autorizada pelo regime -e dedicada a produzir literatura de propaganda.
Tinha cinco anos quando começou a Guerra da Coreia e, embora tenha tido seus primeiros textos publicados aos 20 anos, escolheu viver em meio aos trabalhadores antes de entrar para a associação de escritores.
A transformação de propagandista em crítico do regime em sua obra -sempre feita em segredo- aconteceu nos anos 1990, quando uma crise de fome e uma série de enchentes assolaram a Coreia do Norte. São desse período os contos agora publicados.
"Eles seguem quase todos o mesmo caminho. Alguém que sofreu a vida toda em função das limitações do regime de repente, num momento de desespero, se dá conta de quanto aquilo tudo é apavorante", diz Rogério Galindo, tradutor do livro para o português.
"O que muda são as reações. Alguns naufragam de vez, outros fogem, outros decidem reagir. Bandi reagiu."
São contos tensionados pelo suspense permanente, em que acontecimentos banais do cotidiano deixam no leitor o medo de que os personagens acabem esmagados pela mão de ferro do regime ou pela consciência da opressão -o que sempre acontece.
Em um deles, uma mãe de Pyongyang precisa esconder de todos que seu bebê abre o berreiro ao ver retratos de Karl Marx e do "Grande Líder", por confundi-los com um bicho-papão. No fim, as autoridades concluem que as crianças herdam não só as características físicas dos pais, mas também seus pensamentos -e o choro da criança só pode indicar algo subversivo.
Em outro, uma multidão está presa e com fome numa estação ferroviária, porque os trilhos e as estradas foram fechados para a passagem de Kim Jong-Il.
Uma senhora tenta ir a pé a uma cidade próxima e acaba sendo levada de carona pelo ditador -que depois a usa como peça de propaganda de seu "amor pelo povo". Perturbada, ela conclui viver em uma fábula de seu país: um jardim murado, governado por um demônio, em que o choro é transformado em riso para quem está fora escutar.
Uma imagem em um dos contos parece sintetizar sua posição: um pássaro que grita como se estivesse engasgado com um coágulo de sangue.
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