No dia em que o Uruguai celebrou os 30 anos da redemocratização, o novo presidente Tabaré Vázquez anunciou neste domingo, num pronunciamento em cadeia nacional após sua posse, a criação de um grupo de trabalho para aprofundar as investigações de crimes da ditadura (1973-85) e monitorar o cumprimento de sentenças.
Em sintonia com o perfil simples e austero de seu antecessor, José Mujica, Vázquez escolheu uma caminhonete Fordson de 1951, seu primeiro carro nos anos em que ainda era médico, para ser trasladado do Palácio Legislativo à Praça Independência, no centro de Montevidéu, onde foi realizada a troca da faixa presidencial. Acompanhado pelo vice-presidente Raúl Sendic, Vázquez, que em 2005 foi o primeiro presidente de esquerda do país, desfilou no antigo carro pelas ruas da capital.
O veículo, reformado, lembrou o Fusca modelo 87 de Mujica, hoje quase uma marca registrada no mundo inteiro, que tanto cativou uruguaios e estrangeiros. Vázquez e Mujica têm diferentes opiniões sobre questões como maconha e aborto, mas neste domingo tentaram mostrar-se próximos do povo, dando continuidade a um estilo inaugurado pelo agora ex-presidente, que amanhã assume como senador e passa a ser o principal líder do governo no Parlamento.
A simpática posse de Tabaré foi marcada por ausências importantes: os presidentes da Venezuela e Argentina, Nicolás Maduro e Cristina Kirchner e o vice-presidente dos Estados Unidos, Joe Biden. Estiveram presentes as presidentes Dilma Rousseff e Michelle Bachelet, do Chile, Rafael Correa, do Equador, Ollanta Humana, do Peru e Raúl Castro, de Cuba. Dilma foi a primeira a ter um encontro bilateral com o novo chefe de Estado do país, que durou meia hora, realizado após a primeira parte das cerimônias de posse, no Palácio Legislativo. A presidente convidou Vázquez para visitar o Brasil, mas a viagem ainda não tem data marcada.
— Que os mais infelizes sejam os mais privilegiados — disse Vázquez em seu discurso no Parlamento, lembrando uma frase de José Artigas, herói da independência, e expressando sua decisão de governar para os mais pobres.
Suas declarações e gestos iniciais transmitiram a sensação de continuidade, em momentos em que muitos uruguaios se perguntam como será a convivência entre os dois homens fortes da governista Frente Ampla. Foi um dia de abraços carinhosos e sintonia fina. A única diferença entre ambos foi que Vázquez usou uma gravata e Mujica, como sempre, apenas camisa e paletó. Mas o ex-presidente já avisou que não será um “soldado” do novo governo, para o qual pediu respaldo popular neste domingo.
— Hoje é um dia de unidade nacional — afirmou o ex-presidente, que antes de entregar a faixa a Vázquez voltou a roubar a cena com sua rotina de homem de campo. Pela manhã, Mujica andou de trator e caminhou por sua humilde chácara, localizada a cerca de 15 quilômetros de Montevidéu, com sua mulher, a senadora e também ex-guerrilheira do Movimento Tupamaro, Lucia Topolansky, que no próximo mês de maio tentará eleger-se prefeita da capital. Essas serão algumas das imagens de um documentário que o cineasta bósnio Emir Kusturica, que acompanhou o ex-presidente, fará sobre a vida de Mujica.
SOMBRA DE MUJICA
Com a mujicamania em pleno auge, Vázquez teve uma posse sem muito brilho, nem grandes emoções. O momento mais tenso foi quando o novo presidente convidou os representantes de governos estrangeiros para subirem no palco da Praça Independência e chegou a vez do vice argentino, Amado Boudou, processado na Justiça de seu país por suposta corrupção. Seguidores da Frente Ampla vaiaram Boudou, enviado pela Casa Rosada para substituir Cristina, que neste domingo inaugurou as atividades legislativas em seu país com um longo discurso no Congresso.
Sem Maduro, cuja presença fora rechaçada por setores da oposição semana passada, a Venezuela foi representada pelo vice-presidente do país, Jorge Arreaza. Segundo fontes venezuelanas, Arreaza conversou com vários presidentes latino-americanos no Parlamento. Do lado de fora, manifestantes de esquerda expressaram seu respaldo a Maduro, mergulhado numa delicada crise política que o obrigou a cancelar sua visita ao Uruguai. O vice venezuelano fez questão de agradecer o apoio e recusou-se a responder perguntas da imprensa.
Maduro teria sido uma presença incômoda para Vázquez, opinaram analistas locais. Sem o chefe de Estado venezuelano, sua única preocupação foi dividir as atenções com Mujica. Um artigo de Gonzalo Ferreira, intitulado “O ego de Mujica e a sombra sobre Vázquez“, publicado pelo jornal “El Pais”, explicou o panorama: “O Mujica de 2015 é muito diferente ao de 2005 (quando Vázquez assumiu seu primeiro governo). Em primeiro lugar por seu peso político no Parlamento. Se bem durante três eleições consecutivas liderou o setor mais votado, neste Parlamento controlará (como chefe do Movimento de Participação Popular, que integra a Frente Ampla) a metade da bancada oficial na Câmara”, além de 6 dos 16 senadores do governo, que terá maioria em ambas as casas.