A ditadura venezuelana deu mais um passo neste domingo (9) para tomar os poucos espaços de poder que ainda sobram nas mãos da oposição.
Como? Por meio de mais uma eleição sem a presença dos principais opositores e com resultados questionados, desde que o Conselho Nacional Eleitoral (CNE) deixou suficientes evidências de fraudes nas votações da Assembleia Constituinte, em julho de 2017, e nas eleições de governadores e de prefeitos, em outubro daquele ano.
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Neste fim de semana estavam em jogo cargos de 2.459 vereadores para todo o país. O primeiro informe do CNE, divulgado na noite de domingo, já havia garantido a vitória esmagadora ao oficialista Partido Socialista Unidos de Venezuela (Psuv).Dos dados apurados até aquele momento, 92,3% dos votos, o partido do ditador Nicolás Maduro havia garantido 142 de 156 cargos de vereador em sistema de lista (de um total de 685). Nas circunscrições nominais, dos 467 definidos até o momento, 449 são do Psuv (serão eleitos 1.703 vereadores nominais).
Estavam habilitados a votar 20,7 milhões de venezuelanos, mas o clima das ruas no domingo era de que nada estava acontecendo.
Havia pouquíssimos cartazes de publicidade. Numa rápida enquete nas ruas do centro de Caracas (geralmente mais chavista) e do lado leste (anti-chavista), as respostas mais comuns ouvidas pela Folha foram a de que não se vai votar ou mesmo de que a eleição era desconhecida.
A presidente do CNE, Tibisay Lucena, anunciou uma abstenção de 72,6%, o que não a impediu de dizer que o processo eleitoral “fortalece a democracia” do país.
O órgão eleitoral também anunciou que o princípio da paridade de gênero entre os candidatos foi cumprido, mas não mencionou que os principais partidos de oposição foram impedidos de participar.
Ficaram de fora o Vontade Popular – de Leopoldo López, que cumpre prisão domiciliar –, o Primeiro Justiça – de Henrique Capriles, que teve os direitos políticos cassados – e o Ação Democrática, do ex-presidente da Assembleia Nacional Henry Ramos Allup.
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De oposição "leve", concorreu apenas a Avançada Progressista, do ex-candidato presidencial Henri Falcón, derrotado por Maduro em maio deste ano em um pleito contestado por observadores internacionais e pela oposição, e a tradicional Copei (cristã-democrata).
Em pronunciamento no último domingo (2), Lucena disse que não haveria observadores internacionais no pleito, mas que o governo estava "orgulhoso de estar cumprindo com o cronograma eleitoral".
O lado leste de Caracas, onde se concentra o que restou de oposição na capital, é o principal objetivo dos chavistas. Aí já foram removidos de seus direitos políticos vários ex-prefeitos, como López, Antonio Ledezma e David Smolansky. Antes destas eleições, entretanto, ainda havia muitos vereadores ligados às gestões desses opositores.
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"Vão deixar toda Caracas vermelha, e vai ser cada vez mais difícil voltar a entusiasmar a população a protestar novamente", disse Antonio Nevada, dono de uma farmácia no bairro de Chacao.
Mais interesse no passaporte do que no voto
A Folha de S.Paulo acompanhou o jovem cozinheiro Leon Maud Bezerril, 24, em duas filas nos últimos dias. A primeira, na sexta-feira (7), quando esperava a vez de retirar seu passaporte com prorrogação de dois anos na sede do Saime (Servicio Administrativo de Identificación, Migración y Extranjería), em Caracas.
A segunda, neste domingo (9), quando Bezerril, a contragosto, foi votar em uma escola de Catia, na região oeste da área metropolitana da capital venezuelana.
"Me sinto um palhaço votando, venho porque meus pais, que vão ficar aqui, insistem que eu vote. Mas meu foco agora é apenas ir embora".
Bezerril estudava numa escola técnica para ser eletricista, quando, em 2014, estouraram os principais protestos de rua que convulsionaram o país. O pai, então, pediu que o filho se afastasse de confusões e passasse a ajudá-lo no seu negócio, um restaurante de comida síria em Catia.
Apesar de se tratar de uma região tradicionalmente chavista, a família formada por imigrantes portugueses e sírios é crítica do governo.
Foi por isso que Bezerril acordou às 4 da manhã na sexta e foi para a fila do passaporte. "Minha ideia é ir para Portugal, onde tenho parentes, e tentar trabalho lá. Sinto que aqui desperdiço meu futuro".
O caminho, porém, não é fácil. A reportagem o encontrou na fila às 8h e apenas às 16h conseguiu vê-lo sair dali com o documento.
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A Venezuela não está emitindo passaportes novos por falta de recursos para imprimi-los. Porém, oferece uma prorrogação de dois anos para os que estão vencidos. O procedimento é tão lento, porém, que muitas vezes boa parte desse tempo é devorado pela burocracia. A de Bezerril demorou oito meses para sair.
"Há como fazer as coisas mais rápido, mas os intermediários podem chegar a te cobrar até US$ 1 mil."
Já na fila da votação, no domingo, bem mais rápida, o rapaz votou discretamente e saiu. O pai ia abrir o restaurante, e ele não queria se atrasar.
"Agora, com o passaporte, vou juntar o que ganhei nos últimos meses, e tem um tio meu que está em Lisboa e vai ajudar a pagar o resto da passagem. Preciso ir no primeiro semestre de 2019, senão perco esse passaporte também. Lá, espero conseguir uma documentação de residência".
Situação bizarra no congresso nacional
No centro de Caracas, no belo edifício da Assembleia Nacional, uma estranha situação se normalizou. Há sessões da Assembleia Constituinte, que tomou o espaço e o poder do Parlamento de maioria opositora, eleita em 2015.
Porém, quando os parlamentares constituintes, de maioria governista, não estão em sessão, é permitida a entrada no edifício dos deputados opositores, que seguem votando leis que não são postas em prática.
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No interior do país, a situação de certo modo se repete. Os governadores governistas exercem seus cargos. Porém, os únicos quatro que pertencem a partidos opositores têm designado para acompanha-los um "protetor do povo", escolhido por Maduro, que é quem de fato administra tais estados.