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América do sul

Venezuelanos fogem para as cidades latino-americanas, não para campos de refugiados

Venezuelanos aguardam para se registrar junto às autoridades migratórias no Brasil | MERIDITH KOHUT/NYT
Venezuelanos aguardam para se registrar junto às autoridades migratórias no Brasil (Foto: MERIDITH KOHUT/NYT)

Mais de 2,3 milhões de venezuelanos – aproximadamente 7% de toda a população – têm fugido do país governado por Nicolás Maduro, que enfrenta uma crise econômica e política desde 2014. Esse é o maior deslocamento humano na história da América Latina.

Desde o começo de 2018, 5 mil venezuelanos cruzaram a fronteira todos os dias, muitos deles à procura de segurança em pequenos municípios e cidades do Brasil, Chile, Colômbia, Equador e Peru. 

Cada vez mais, surgem campos improvisados de refugiados nas cidades da América do Sul, aumentando a preocupação de que esses locais se tornem guetos permanentes. 

A América Latina não é a única região onde as cidades estão lutando para lidar com a migração em massa - uma população que, antigamente, teria se estabelecido em campos de refugiados. 

Migrantes preferem cidades a campos de refugiados 

Os refugiados nas cidades são um fenômeno crescente. Segundo recente relatório da Organização Mundial de Refugiados, que ajudei a produzir, centenas de cidades ao redor do mundo foram sobrecarregadas por uma onda de pessoas que fugiram de conflitos na Síria, Mianmar, Sudão e outros locais. 

Desde o deslocamento global após a Segunda Guerra Mundial – e principalmente após a Guerra Civil da Nigéria, entre 1967 e 1970 – organizações humanitárias começaram a abrigar refugiados em campos rurais, onde os imigrantes recebem abrigo, comida, ajuda jurídica, educação e assistência médica. 

Se tiverem opção, contudo, os refugiados geralmente preferem morar em cidades. Lá, eles têm mais chances de reconstruir suas vidas. 

Mas quando muitos imigrantes chegam de uma só vez, eles podem acabar gerando uma série de problemas para quem já está na cidade. Na maior parte das vezes, eles chegam com pouco mais que as roupas do corpo, necessitando urgentemente de abrigo, comida, educação e aulas para aprenderem a língua local. 

No entanto, nem a Convenção das Nações Unidas relativa ao Estatuto dos Refugiados, de 1951, nem o seu protocolo suplementar, de 1967, se referem a refugiados urbanos, muito menos definem os papéis e responsabilidades das autoridades municipais em relação aos migrantes. 

Embora o atual plano estratégico do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (Acnur) reconhece que, cada vez mais, refugiados estão indo para as cidades, oferece poucas recomendações para que os municípios melhorem o atendimento aos recém-chegados. 

De acordo com o Acnur, atualmente, aproximadamente 17,5 milhões de pessoas – cerca de 70% de todos os refugiados do mundo - vivem em áreas urbanas. ï»¿

Barreiras políticas para integrar refugiados 

O Acnur emitiu sua primeira declaração política oficial sobre refugiados urbanos em 1997. Preocupada com o fato de que aumentar a assistência municipal poderia atrair os refugiados às cidades, promoveu um modelo de “autossuficiência” para mantê-los afastados. 

Na prática, isto significa que os refugiados urbanos e outros migrantes conseguem se virar sozinhos. Alguns são capazes, até mesmo, de bancar um aluguel de um apartamento. Outros ficam com amigos e familiares. E muitos acabam desabrigados e como indigentes. 

O status de “indocumentado” dificulta a autoconfiança ao chegar nas cidades. Milhões de refugiados e solicitantes de refúgio que moram em cidades da Tailândia, Jordânia e Quênia não têm permissão para trabalhar legalmente, o que os leva a arranjar empregos muito mal pagos no mercado negro. Poucos têm acesso à educação formal ou serviços de saúde. 

Algumas cidades adotam uma abordagem mais ativa para atender refugiados e migrantes - embora nem sempre com sucesso. 

Em Calais, na França, milhares de migrantes e refugiados do Oriente Médio e do Norte da África foram encaminhados a um campo localizado em um antigo aterro, onde eram atendidos por instituições de caridade e organizações humanitárias locais. ï»¿

Mas a "Selva de Calais", como era conhecido o campo, não tinha saneamento adequado, e, por isso, doenças se espalharam rapidamente. Em 2016, mais de 6,4 mil habitantes foram evacuados. 

A resposta “remendada” aos recém-chegados e a grande visibilidade dos migrantes que permanecem “acampados” nas ruas estão alimentando o descontentamento público dos moradores das cidades que veem os refugiados como um mecanismo de drenagem dos já escassos recursos disponíveis para as cidades. 

Cidades assumem a liderança 

A política é uma das razões pelas quais a ONU tem sido morosa em lidar com a crise dos refugiados urbanos. O órgão tem sido pressionado pelos países-membros a continuar construindo e administrando campos de refugiados, em vez de ajudá-los a se integrarem e reconstruírem suas vidas nas cidades. 

Políticos com inclinação conservadora, em toda a parte, da Uganda e Nepal aos Estados Unidos e à Colômbia, classificam os migrantes como uma ameaça à segurança nacional. 

Mas as coisas podem estar começando a mudar. 

Em 2015, após uma onda de refugiados ter saído do Oriente Médio e do norte da África, a Eurocities, fundação que reúne as principais cidades europeias - incluindo Barcelona, Frankfurt e Rotterdam – fundou o projeto “Cidades Solidárias". Eles estão trabalhando em conjunto para proporcionar habitação e outros serviços básicos aos refugiados e, ao longo do tempo, integrá-los no dia a dia da vida social. 

Em 2017, a OIM (Organização Internacional de Migração) e o grupo das Cidades e Governos Locais Unidos (CGLU), reuniram 150 cidades ao redor do mundo para assinar uma declaração a respeito dos direitos dos refugiados urbanos. 

Afirmando que os refugiados podem "trazer significativas contribuições sociais, econômicas e culturais para o desenvolvimento urbano", eles pediram às organizações internacionais e aos governos nacionais que apoiem, política e financeiramente, as cidades no atendimento às populações migrantes. 

Nos EUA, muitas cidades reagiram à repressão imigratória do presidente Donald Trump declarando-se publicamente como "cidades acolhedoras”, para receber refugiados e requerentes de asilo. 

Outras 500 cidades americanas - incluindo Chicago, Los Angeles e Nova York - foram mais longe, estabelecendo-se como "santuários" onde migrantes sem documentos e refugiados podem buscar proteção das autoridades federais de imigração. 

Recepção brasileira 

Até agora, imigrantes venezuelanos não tiveram a mesma acolhida na América do Sul. ï»¿ No Brasil, que recebeu cerca de 56 mil migrantes venezuelanos e requerentes de asilo desde 2015, as cidades mostraram-se gravemente despreparadas ao receber pessoas de fora. 

A maioria dos venezuelanos que fugiram da crise econômica de seu país acabam permanecendo na América do Sul. A OIM estima o número aproximado de migrantes venezuelanos estabelecidos nos países selecionados, com base no Censo Nacional e nas emissões de permissão de residência. 

Apenas algumas centenas de venezuelanos procuraram asilo em São Paulo, a maior cidade do Brasil. E, mesmo assim, essa rica metrópole de mais de 30 milhões de habitantes está lutando para fornecer-lhes serviços básicos como emprego, alimentação e outras necessidades. 

Nas pequenas cidades brasileiras de fronteira, o movimento de pessoas chega a ser esmagador. Autoridades acabaram apelando à ajuda militar e internacional para montar abrigos para refugiados. ï»¿

A cidade de Boa Vista, que fica a 200 quilômetros da Venezuela, tinha 266 mil habitantes. Os venezuelanos, porém, aumentaram sua população em 10%. 

De acordo com autoridades do estado de Roraima, consultas em clínicas públicas aumentaram 6,5%, no ano passado, quando venezuelanos fizeram uso do sistema de saúde pública do Brasil. Muitos requerentes de asilo chegam precisando de tratamento para desidratação, desnutrição e doenças. 

O índice de criminalidade também cresceu em Roraima, 132% desde 2015 - um aumento que os funcionários atribuíram aos migrantes. 

O sentimento antiimigração está crescendo na fronteira entre Brasil e Venezuela. Agentes locais de algumas cidades da fronteira passaram a exigir passaportes e autorizações especiais para que recém-chegados acessem serviços públicos. Outros, criaram banheiros separados apenas para migrantes. 

Em março, vários brasileiros enfurecidos expulsaram 50 venezuelanos da cidade vizinha de Mucajai, e em agosto, Roraima fechou sua fronteira com a Venezuela, embora o Supremo Tribunal Federal tenha ordenado sua reabertura 15 horas depois. 

Naquele mês, um imigrante venezuelano acusado de roubo foi morto na cidade de Paracaima, e outro venezuelano foi esfaqueado e morto a tiros em Roraimópolis, uma cidade no estado de Roraima. O exército brasileiro foi enviado para a fronteira para manter a paz. 

Cidades tem vantagens competitivas

Apesar desses desafios, vejo cidades comparativamente bem preparadas para ajudar os refugiados.  Autoridades municipais trabalham na prática: coletam lixo, fornecem água potável, gerenciam cuidados de saúde pública, criam moradias e constroem estradas - exatamente os tipos de serviço que os migrantes necessitam. 

Mas as cidades mais pobres, como as da América do Sul, precisarão de apoio econômico nacional e internacional para atender às necessidades de seus novos residentes. 

Os municípios, no entanto, não podem mudar as leis nacionais para tornar os refugiados mais “bem-vindos”. Mas com uma pequena ajuda - e muito menos barreiras - eles podem fornecer o atendimento básico que os migrantes precisam.

* Robert Muggah é professor associado da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) e cofundador do Instituto Igarapé
The Conversation

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