Imagine se a cidade de São Paulo recebesse 600 mil refugiados em apenas dois anos. É mais ou menos isso que está acontecendo com Boa Vista, capital de Roraima, e com o resto do estado – houve um aumento de 5% a 10% na população.
Boa Vista era repetidamente considerada uma das melhores cidades do Brasil para se viver: uma capital planejada, de ruas largas, que não tinha população de rua visível. Agora, a cidade de 320 mil habitantes convive com 30 mil venezuelanos, sendo que 2 mil dormem nas calçadas, ao relento, e os outros moram em abrigos ou espremidos em quartos alugados insalubres.
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O estado se esforça para absorver cerca de 50 mil venezuelanos que continuam em Roraima, dos 127 mil que emigraram para lá desde o fim de 2015, fugindo da crise política e humanitária na Venezuela. “As pessoas reclamam muito, porque elas perderam seus espaços”, diz Teresa Surita (MDB), prefeita de Boa Vista. “É um momento novo para a gente. Em qualquer supermercado ou serviço público, tem venezuelanos abordando as pessoas, pedindo dinheiro.”
Impacto dos refugiados nos serviços públicos
O maior impacto foi na saúde. No Hospital Geral de Roraima, o número de atendimentos a venezuelanos subiu 2.643%. Foram 628 em 2015 e 10.040 em 2018 até julho. “Os insumos e medicamentos que pedimos para o ano já acabaram – falta dipirona, soro, seringa”, diz Marcilene da Silva Moura, diretora do local. “Quando um venezuelano morre e não tem nenhum parente para identificar, o consulado não ajuda e os corpos ficam no IML um tempão.”
No hospital materno-infantil de Boa Vista, houve um aumento de 102% no número de partos de venezuelanas: subiram de 566 (de um total de 9.358) em 2017 para 571 (de um total de 4.811) só nos primeiros seis meses de 2018.
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O sarampo, doença que havia sido eliminada, voltou. Até 10 de agosto, Roraima já tinha 296 casos confirmados, sendo 201 de venezuelanos. Quatro pessoas morreram em decorrência da doença, que pode ser evitada com vacina. Mas o sarampo só voltou porque a cobertura vacinal no estado estava baixa.
O número de alunos venezuelanos matriculados na rede estadual passou de 12 em 2015 para 1.484. A prefeitura recebeu uma verba do governo federal para fazer salas de aula extras em contêineres.
Roraima vive crise de situação fiscal
O governo do estado cobra da União R$ 184 milhões, que corresponderiam aos gastos extras decorrentes da entrada dos venezuelanos. Roraima vive uma situação fiscal difícil. Cerca de 80% da receita do estado vem de repasses federais. O motor da economia é o funcionalismo público – a indústria é incipiente e o setor agropecuário só agora retoma força.
A crise orçamentária é tão séria que o salário dos servidores públicos cai cada mês em uma data diferente, conforme disponibilidade de recursos. Desde o fim de 2017 há seguidos atrasos nesses pagamentos.
Os R$ 190 milhões previstos na medida provisória anunciada pelo governo federal em fevereiro foram destinados à força tarefa que cuida da acolhida humanitária, e a maior parte é usada na construção e gestão de abrigos.
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“Como ignoraram nossos pedidos de recursos, vamos ter que restringir o atendimento dos venezuelanos aqui. Se não podemos evitar que entrem, vamos diminuir o acesso a serviços de saúde de alguma maneira”, diz a governadora, Suely Campos (PP).
A governadora já baixou um decreto que restringe o acesso dos venezuelanos ao sistema de saúde, exigindo apresentação de passaporte, e pede ao governo federal o fechamento da fronteira. As duas medidas foram derrubadas.
Venezuelanos são usados como bode expiatório para o aumento da violência
Os venezuelanos são usados como bode expiatório para o aumento da violência no estado. Quase todos os candidatos ao governo estadual culpam os migrantes pela escalada na violência, citando que a estatística falsa de que oito em cada dez boletins de ocorrência registrados em Roraima envolvem venezuelanos – o número verdadeira é de 4 em cada 10, segundo a Polícia Militar.
Em Pacaraima, onde viviam apenas 5 mil pessoas na região central e agora existem de 500 a 700 venezuelanos morando nas ruas, os dados são mais preocupantes. Segundo a delegacia da cidade, 65% dos boletins de ocorrência registrados no município em 2018 envolviam venezuelanos.
“Não recebemos nem uma viatura a mais do governo federal para lidar com esse aumento de ocorrências”, diz Edison Prola, comandante geral da PM em Roraima.
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Outra fonte de reclamação da população local é a prostituição. “Nunca houve prostituição de rua aqui em Boa Vista, só em bares e boates. Agora, temos 600 prostitutas concentradas em alguns quarteirões, 90% venezuelanas”, diz Prola. As prostitutas eram conhecidas como as “ochenta”, porque cobravam R$ 80, preço inferior ao das colegas brasileiras. “Mas agora, com a chegada de mais gente, tem muita concorrência, e estamos cobrando R$ 50”, diz uma delas.
A insatisfação popular com a entrada dos venezuelanos tem sido um prato cheio para os políticos locais, que apostam no discurso xenófobo e no tema da insegurança. “A insatisfação da população demonstra que o tema foi apropriado por segmentos políticos, pois a ausência de cidadania e representatividade dessas pessoas facilita a construção de uma narrativa de que a migração é responsável por todos os problemas do estado”, diz João Carlos Jarochinski, coordenador do curso de relações internacionais da Universidade Federal de Roraima, lembrando que o estado tinha um problema com facções criminosas e no sistema prisional muito antes da chegada dos venezuelanos.
“Vejo a imigração de venezuelanos como crise humanitária, a maior que o Brasil já enfrentou em todos os tempos. Mas não concordo com a forma pela qual a situação está sendo tratada”, diz Shirley Rodrigues, que é colunista há 28 anos no jornal Folha de Boa Vista. “Nosso estado é formado por pessoas que vieram dos mais diferentes lugares, somos todos imigrantes. Discriminar as pessoas que chegam aqui em busca de ajuda só incentiva a violência.”
Roraima é o estado menos populoso do Brasil, com 520 mil habitantes, e também um dos mais remotos – só é possível sair de lá de avião (uma passagem para São Paulo não custa menos que R$ 800) ou de ônibus, passando por Manaus (quatro dias até São Paulo). O processo de interiorização, pelo qual o governo federal leva venezuelanos de avião para outros estados com melhor infraestrutura, só levou 820 migrantes em seis meses.
O governo alega que não há vagas nos abrigos em outros estados e promete que levará outros 1 mil até o início de setembro. Atualmente, grande parte dos migrantes de Roraima vai parar nas ruas, porque os dez abrigos existentes só têm 4,7 mil vagas e estão lotados.
Imigrantes vivem cotidiano de fome
Sempre quando chega a hora das refeições dos pacientes, 11h30 e 17h30, o Hospital Geral de Roraima fica cheio de venezuelanos. Muitos pegam pulseirinhas de identificação que foram jogadas no lixo e se fingem de acompanhantes de pacientes, para poder comer. Outros entram no pronto-socorro e dizem estar com muita dor de cabeça, para serem internados e ganharem um almoço.
“A doença da maioria dos venezuelanos que chegam aqui é a fome”, diz Marcilene da Silva Moura, diretora do hospital. O cotidiano dos venezuelanos que vivem em Roraima é feito de pequenas e grandes indignidades.
Yosmal Sanchez, 38 anos, está preso à máquina de hemodiálise do hospital porque não tinha dinheiro – nem conseguia encontrar em Caracas – um simples remédio para pressão alta. O remédio que ele precisava custa R$ 7 ao mês no Brasil, isso quando não é distribuído de graça. Mas Yosmal deixou de tratar sua hipertensão quando perdeu o emprego na Venezuela. Ele trabalhava nas obras do metrô de Caracas, da Odebrecht, que foram paralisadas. Acabou com insuficiência renal.
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Segundo a prefeitura de Boa Vista, 65% dos venezuelanos na cidade estão desempregados e 10% deles vivem em espaços públicos. Roselis Triana, 35, é uma delas. Faz dois meses que dorme na calçada em frente à rodoviária com sua filha Kristal, 5, o marido Carlos, 36, e o primo Darwin, 30. Usa o banheiro da rodoviária e paga R$ 5 no cibercafé para falar com os dois filhos que deixou em Caracas.
“Nós, venezuelanos, éramos ricos e não sabíamos. Nunca imaginei que ia acabar dormindo na rua”, diz Roselis. O marido era motorista de lotação e o irmão, sapateiro. Perderam o emprego. Ela já pediu para ser transferida para um abrigo em Boa Vista, mas a resposta é sempre a mesma: não há vagas. Seu sonho é ser enviada para São Paulo.
Alexander Perez, 50, vendeu os pneus e a bateria de seu Fiat Palio 98 pelo equivalente a R$ 120 para pagar a viagem de sua cidade, El Tigre, até Pacaraima. Era dono de uma oficina mecânica na Venezuela. “Lá ninguém vai na oficina, quando o carro quebra, eles encostam.”
Ele agora bate de porta em porta em Boa Vista e se oferece para capinar, limpar ou consertar qualquer coisa. Ganha, com sorte, R$ 50 por dia -menos do que ganharia um brasileiro. Mas não reclama. “Capinando um dia eu ganho mais do que a minha esposa em um mês, dando aulas na universidade.”
Eles também são alvo de preconceito e violência
Frequentemente, os venezuelanos são alvo de preconceito e violência em Roraima. Em Boa Vista, por exemplo, a polícia está fazendo batidas para combater o aumento de roubos de bicicletas. Os venezuelanos que estejam pedalando sem a nota fiscal têm sua bicicleta apreendida. “Mas quem é que sai na rua carregando nota fiscal da bicicleta?”, pergunta a prostituta venezuelana Mary, que teve sua bicicleta confiscada.
O venezuelano Raymundo Campos, de 22 anos, morreu na semana passada com uma facada na costela por causa de uma caixa de som portátil, na frente do quarto que dividia com a família. Um brasileiro tentou roubar o objeto e o esfaqueou. A família telefonou para o Samu, mas o atendente foi ríspido: “Não somos serviço de táxi para venezuelano”. Quando a ambulância chegou, uma hora depois, Ray estava morto.
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Sua mãe, Belkis Campos, 47, desesperou-se e foi com um grupo de venezuelanos até uma casa onde achava que estava escondido o assaltante. O dono do lugar chamou a polícia e disse que havia prostitutas venezuelanas tentando entrar lá. Belkis foi presa, acusada de tentativa de roubo de um celular e levada, algemada, para a delegacia. Passou a noite na cela. Teria perdido o velório do filho, não fosse a ajuda de uma ONG.
“Não somos todos maus, não somos todas prostitutas”, diz Belkis, que cata latinhas em Boa Vista. Seu filho Ray vendia panos de prato. Belkis saiu de Caracas seis meses atrás, porque está com câncer no seio e não conseguia tratamento.
“Esse sangue que caiu no solo não será desperdiçado, vai lavar cada um dos venezuelanos que continuam chegando aqui”, dizia o padre mexicano Elias Arroyo Roman, no velório onde alguns poucos venezuelanos se aglomeravam em torno do caixão. Belkis faria um exame naquela semana, para depois ser operada -mas faltou à consulta médica porque estava enterrando o filho.