A pandemia de coronavírus, que ameaça a segurança alimentar das regiões mais pobres do planeta, atingiu em cheio o país mais rico do mundo. O rompimento da cadeia produtiva causado pelo surto já ameaça o abastecimento de comida dos EUA e afeta um dos pilares mais fiéis da base eleitoral do presidente Donald Trump: os agricultores.
O fechamento de escolas, hotéis, bares, restaurantes e cafés nas grandes cidades causou um choque na cadeia produtiva. "Não há demanda suficiente no consumo doméstico que substitua esses mercados", disse Dan Glickman, diretor do Aspen Institute e ex-secretário de Agricultura dos EUA.
Sem ter para quem vender, a pandemia provoca um excesso de oferta. Com isso, os produtores têm descartado 14 milhões de litros de leite todos os dias e destruído 750 mil ovos por semana. Também têm deixado verduras e legumes apodrecerem na lavoura e abatido e descartado em massa porcos, aves e gado.
Os agricultores que votaram no republicano acreditaram na promessa de revitalização do setor, mas passaram os últimos três anos acumulando prejuízos causados pela guerra tarifária com a China. Em 19 de janeiro, parecia que finalmente os ventos sopravam a favor. Em uma convenção anual de produtores rurais, no Texas, o discurso do presidente era triunfante. "Vocês precisam comprar terras e tratores maiores", disse. "Dias melhores para os fazendeiros americanos estão por vir."
Mas, quatro dias depois, a 13 mil quilômetros dali, autoridades chinesas não conseguiram controlar um novo vírus respiratório e colocaram os 11 milhões de habitantes de Wuhan em quarentena total, dando início a uma reação em cadeia que seria devastadora também para os produtores americanos, que respondem por US$ 2 trilhões do PIB dos EUA.
O demógrafo William Frey, do Brookings Institution, vem rastreando a pandemia nos EUA. De acordo com ele, desde o fim de abril, o coronavírus está lentamente invadindo território republicano, formado por condados de maioria branca em pequenas cidades e zonas rurais, principalmente em Estados-chave, que serão decisivos na eleição presidencial de novembro.
Nas últimas três semanas, segundo Frey, 548 condados onde Trump venceu em 2016 entraram na categoria de "alto contágio" - que significa mais de 100 casos para cada 100 mil habitantes. Pelo menos 120 desses condados ficam em Estados-chave, como Flórida, Carolina do Norte, Michigan, Wisconsin e Pensilvânia.
No mesmo período, apenas 102 condados vencidos por Hillary Clinton atingiram a mesma categoria. Em parte, o movimento ocorre porque o vírus começou a se espalhar pelas grandes metrópoles americanas, redutos eleitorais dos democratas, mas também porque Trump venceu a eleição em um número maior de condados.
Embora Hillary tenha tido cerca de 3 milhões de votos a mais, ela foi mais votada em apenas 487 dos 3.113 condados americanos. Trump venceu em 2.626 condados, a maioria formado por cidades médias e pequenas, além das zonas rurais. "O vírus está se movendo na direção de Estados-chave que ainda não viveram a pandemia", disse Frey ao Washington Post. "São lugares que podem fazer diferença na campanha presidencial."
Outro sinal de que a pandemia avança pelo território de Trump foi dado por um levantamento do jornal Politico, publicado na semana passada. Os dados mostram que os casos de coronavírus dobram em menos de 14 dias em 19 condados em Wisconsin, Michigan e Pensilvânia - quatro anos atrás, o presidente venceu em todos eles, exceto um, com mais de 65% dos votos.
Especialistas temem que, se o vírus se espalhar pela zona rural, que tem uma rede sanitária mais modesta, o risco de um desastre é alto. Os aliados do presidente apostam que a baixa densidade demográfica se incumbirá de isolar a população e impedir o contágio.
Relatório intitulado Impacto Social, da ONG One Country, divulgado na quinta-feira, indica que metade das publicações feitas em redes sociais, na semana entre os dias 4 e 10, em zonas rurais nos Estados de Iowa, Michigan, Minnesota, Pensilvânia e New Hampshire, foram comentários anti-Trump - um salto dos 36% registrados na semana anterior.
Em favor dos republicanos conta a imprecisão das métricas em redes sociais e o fato de a ONG ser ligada ao Partido Democrata. Mesmo assim, alguns aliados do presidente estão realmente preocupados com o impacto da pandemia na zona rural, especialmente pelo fato de o coronavírus afetar o bolso dos agricultores, fiéis eleitores de Trump, e colocar em risco a produção de alimentos nos EUA.
A dívida total do setor agrícola deve chegar a US$ 425 bilhões (R$ 2,4 trilhões) neste ano, segundo Robert Johannson, economista do Departamento de Agricultura dos EUA. A preocupação de Trump com seus eleitores se reflete no tamanho da ajuda. Nos últimos dois anos, a Casa Branca aprovou no Congresso US$ 28 bilhões (R$ 163 bilhões) para ajudar os produtores após a perda de mercado na guerra comercial com a China.
Em abril, os congressistas chancelaram mais US$ 19 bilhões (R$ 110 bilhões)para compensar os prejuízos causados pela pandemia. Outros US$ 14 bilhões (R$ 81 bilhões) estarão disponíveis para os agricultores em julho. O Departamento de Agricultura também prometeu distribuir US$ 16 bilhões (R$ 93 bilhões) diretamente para os fazendeiros e comprar US$ 3 bilhões (R$ 17 bilhões) em produtos frescos, laticínios e carne para bancos de alimentos e organizações comunitárias.
Alguns analistas, no entanto, dizem que é pouco para que os agricultores continuem pagando seus empréstimos, principalmente com a queda brusca dos preços de commodities, como milho e trigo. "Já vivi tempos ruins, mas este é o pior", disse Scott Glezen, de 43 anos, um produtor de leite de Lisle, Estado de Nova York.
Trabalhadores contaminados tiveram de ser afastados, o que causou o fechamento de duas processadoras nos arredores da cidade de Nova York e desorganizou o transporte do produto. Em março, ele recebeu recomendação da empresa distribuidora, no Estado do Missouri, de que a única saída era descartar o leite. Há dias que ele despeja metade da produção diária nos tanques de esterco. Em outros, joga tudo fora.
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