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A decisão de invadir a Ucrânia, iniciando uma guerra que já se estende há mais de 20 dias, reacende uma questão sobre o governo da Rússia: Vladimir Putin é ou não é um ditador? No poder por mais de duas décadas (como presidente e primeiro-ministro), Putin nega ganas de “restaurar um império”. Suas ações dentro e fora da Rússia, no entanto, têm demonstrado que vale tudo – de censura à imprensa e ataques a civis até uma ameaça nuclear – para aumentar a área de influência.
A classificação de um governo como democrático ou ditatorial, via de regra, se baseia em um conjunto de fatores objetivos. No entanto, o professor de Relações Internacionais do Ibmec SP Carlo Cauti alerta que a análise se torna um pouco mais complexa em contextos externos ao Ocidente, como é o caso da Rússia.
“A democracia é um conceito ocidental, não universal. O voto feminino, a liberdade individual, por exemplo, são direitos que surgiram no Ocidente. [O primeiro-ministro britânico Winston] Churchill dizia que a democracia é o pior sistema, mas é melhor que os demais. Na nossa concepção, esse é o melhor modelo e o único viável. Mas é difícil analisar outros contextos pelo nosso ponto de vista”, pondera Cauti.
Visão semelhante tem o doutor em História e professor do Colégio Mackenzie Tamboré, Victor Missiato. Ele reforça que o conceito de democracia usado em países como China e Rússia abarca interpretações completamente diferentes da “nossa democracia liberal”. “Gosto de usar esse termo, porque, para nós, a democracia não está ligada apenas a eleições e voto, mas vai muito além disso, tem relação com a liberdade do povo na ação e na expressão”, explica. “Ou seja, a baliza da democracia liberal pode até existir na Rússia de forma constitucional, no papel, mas na prática é diferente como o povo russo lida com o poder”, completa Missiato.
O que é uma ditadura?
Carlo Cauti lembra que um governo democrático costuma aglutinar algumas premissas, como liberdade econômica e de consciência, educação média da população, cultura do país, além das individualidades e da presença de uma etnia (que inclui língua, religião e costumes culturais), de certa forma, homogênea. “Não é uma receita de bolo, mas um conjunto de fatores. Caracterizar um governo como ditadura não é como uma fórmula química, que tem que ter tudo ali, é bem mais complexo”, afirma.
A lista de marcos antidemocráticos do governo Putin é extensa: censura à imprensa, leis que limitam as liberdades individuais, processo eleitoral questionável (e questionado por observadores internacionais), controle público sobre a economia, assassinatos de opositores no exterior, presença opressiva da polícia e redução de direitos políticos da população.
“Olhando a Rússia por uma perspectiva da tradição ocidental, de democracia e liberalismo, algo que se constituiu no século XX, Vladimir Putin poderia ser considerado um ditador, com base nesses fatores. Mas para o povo russo, ele está longe de ser um ditador”, garante Missiato.
De acordo com o professor, falta aos russos uma vivência da democracia liberal, para que esse conceito de ditadura possa ser entendido e aplicado. “Mesmo após a União Soviética, na transição do [Boris] Yelstin para o Putin, isso já foi sendo remendado de várias formas, para que ele pudesse continuar no poder”, lembra.
O professor Carlo Cauti concorda e prefere classificar Putin como um autocrata. “Ele é um autoritário, com certeza. Agora, uma ditadura é mais complexa. Na Rússia, há uma série de contrapoderes, mais ou menos mansos, mas ainda existem. Em uma ditadura não há contrapoder, a Coreia do Norte, por exemplo, é diferente”, analisa.
Para o professor, embora os oligarcas e o parlamento russo (a Duma) possam atuar como um contrapoder no país, nesse contexto específico da guerra, o forte sentimento nacional prevaleceu sobre a ideia de liberdade defendida pela democracia. “Nesse momento, houve uma união desses centros de poder em grande maioria. A Duma apoiou basicamente em unanimidade a invasão da Ucrânia, o que não faria sentido para uma oposição. Mas o sentimento nacional é muito forte e predomina”, afirma.
Se a ideia de que “sem Putin, não há Rússia”, propagada por Vyacheslav Volodin, membro do parlamento russo, pode soar absurda ao Ocidente, talvez dentro do contexto histórico, político e social do país a visão seja um pouco diversa. Isso porque, diferentemente do Ocidente, onde grupos culturais se agrupam naturalmente em países, a Rússia não conta com uma homogeneidade étnica.
Segundo Cauti, nesse sentido, as ações de Putin para manter o país coeso seriam um preço que uma boa parte dos russos estaria disposta a pagar. “Uma ampla faixa da população, que pode não ser maioria absoluta, compactua com essa visão, porque, para eles, não há outras alternativas. Se a Rússia não fosse como ela é, com um poder forte que consiga manter a ordem, deixaria de existir como país. Ela está ‘condenada’ a ser império, a ter um poder central autoritário, senão se fragmentaria”, explica o especialista.
O professor de Relações Internacionais reforça que considera a democracia o melhor sistema, mas pondera que, na prática, sua aplicação nem sempre é fácil fora do Ocidente. “A Líbia, por exemplo, é dividida em três regiões que se odeiam e não querem ficar juntas. [Muammar] Kadafi mantinha todos juntos, com uso de violência. Após sua morte, veio a tentativa de implantar a democracia e o país está em guerra civil há dez anos. O que é melhor? Essa grande dúvida talvez nunca seja respondida”, afirma.
“Ditador assassino”, diz Biden
Ao redor do mundo, o coro que define Putin como ditador ganha novas vozes a cada avanço da guerra no país vizinho. Na quinta-feira (17), o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, voltou a descrever Vladimir Putin como um "ditador assassino" que autorizou ataques "desumanos" contra a Ucrânia. No dia anterior, Biden já havia classificado o mandatário russo como "criminoso de guerra", declaração que o Kremlin considerou "inaceitável e imperdoável". "(Putin é) um ditador assassino, um puro bandido que está travando uma guerra imoral contra o povo da Ucrânia", afirmou o norte-americano durante um almoço no Congresso.
Para o professor Mark Galeotti, autor de dezenas de livros sobre a Rússia, ainda há “resquícios de uma sociedade civil e constitucionalismo” no país. Porém, pondera ser “mais difícil acreditar que eles vão durar por muito tempo”. Segundo o estudioso, por muito tempo Putin usou a fórmula do autoritarismo pós-moderno, que se baseia mais na apatia que na paixão ou no medo.
O jogo começou a mudar a partir de seu retorno ao poder em 2012, quando se convenceu de que a CIA havia provocado protestos contra ele. “Cada vez mais, ele começou a confundir oposição com traição, justamente em um momento em que a economia piorava, exacerbada por sanções”, recorda Galeotti. Suas atitudes cada vez mais repressivas chegaram à “fase final” com a guerra na Ucrânia. “Embora certamente haja um novo e compreensível novo medo no ar na Rússia, o estado policial de Putin não será tão eficaz e poderoso quanto ele poderia esperar”, aposta o escritor.
Na visão de Dan Slater, professor de ciência política da Universidade de Michigan, “Putin é definitivamente um ditador”. Em entrevista publicada pela instituição de ensino em março, ele afirmou que governo autoritário e ditadura podem ser usados como sinônimos por estudiosos.
“Mas quando chamamos um regime de ditadura ou autocracia, geralmente implica em um poder muito personalizado. Não é tanto uma liderança coletiva que governa, mas a vontade de ferro de um determinado líder. Quer se use o termo autoritarismo ou ditadura, certamente, qualquer um se aplicaria ao regime de Putin agora”, opina.
Slater também acredita que a população russa está dividida a respeito das ações do presidente e que a popularidade de Putin tende a se enfraquecer concomitantemente à economia do país.
O professor de política global da University College London e colunista do The Washington Post, Brian Klaas, se dedicou a estudar e entrevistas déspotas em todo o mundo, por mais de uma década. Em um artigo publicado nesta semana, ele afirma que “Vladimir Putin caiu na armadilha do ditador”. Isso porque, de acordo com Klass, a estratégia de criar uma cultura de medo, reprimindo todo o tipo de discordância a suas ações e ideias, para permanecer no poder é justamente o que tende a desencadear a queda de um governante.
“Ditadores e déspotas começam a acreditar em suas próprias mentiras, repetidas e propagadas pela mídia controlada pelo Estado. Isso pode ajudar a explicar por que os recentes discursos de Putin se destacaram como discursos descontrolados. Certamente é possível que sua mente tenha sucumbido à sua própria propaganda, criando uma visão de mundo distorcida na qual a invasão da Ucrânia foi, como disse Trump, um movimento incrivelmente ‘inteligente’”, afirma.
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