Músicos tocam em frente de uma agência do banco russo Sberbank, em Simferopol| Foto: Vasily Fedosenko/Reuters

Opinião

Uma granada sem pino sob o título frágil de "província autônoma"

Eduardo Saldanha, professor de Direito Internacional na FAE

A convocação do referendo na Crimeia e a forma como ele foi conduzido jogou a legalidade para o alto e transformou tudo em uma grande luta por zonas de influência e poder.

Manter sob o mesmo manto governamental grupos díspares será sempre uma bomba prestes a estourar. A região da Crimeia representa hoje uma granada sem pino que repousa sob o frágil título de "província autônoma", uma falácia que está exibindo suas contradições em uma luta por poder que marginalizou a legalidade.

Ao mesmo tempo em que dá autonomia à Crimeia, o titulo de "província autônoma" limita o seu poder político, mantendo-a legitimamente sob o mando de Kiev. Dessa forma, esta autonomia ilusória foi utilizada como argumento para que o parlamento da região viesse a decidir unilateralmente por um referendo destituído de legalidade, mas cheio de conteúdo político.

A convocação do referendo certamente refletiu a vontade da maioria da população da Crimeia, assim como dos seus mandatários políticos, mas fazer a vontade da maioria pode ter mandado a legalidade para o espaço, pois a simples convocação sem o apoio de Kiev excluiu a legalidade em nome de um jogo pela ocupação de espaços de poder, o que ficou evidente na redação da cédula usada no referendo.

Em resumo, a tendência da Crimeia em se anexar à Federação Russa até pode ser natural e talvez politicamente o caminho mais sensato a seguir, porém, carente de legalidade. E agora, Crimeia?

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Sanções

Numa ação para tentar isolar a Rússia, os americanos impuseram congelamento de bens nos EUA e restrições a viagens de 11 russos e ucranianos. Porém, Putin não entrou na lista das sanções. A União Europeia impôs sanções semelhantes contra 21 pessoas – sendo 13 russos e oito da Crimeia, sem divulgar os nomes. Se os alvos não tiverem bens nem interesse em entrar nesses lugares, nada ocorre.

30 de março

O primeiro-ministro da Crimeia, Serguei Axionov, disse que a península fará parte da Rússia a partir de 30 de março. Antes, ele havia dito que a transição levaria ao menos um ano. Na Ucrânia, o Parlamento aprovou uma mobilização parcial das tropas para fazer frente à Rússia.

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Contexto

Moscou agiu depressa para trazer a Crimeia para seu domínio depois que o presidente da Ucrânia, Viktor Yanukovich, apoiado pelo governo russo, foi destituído e fugiu de Kiev em 21 de fevereiro.

Soldados participam de treinamento em área perto de Kiev
Putin faz discurso hoje

O presidente da Rússia, Vladimir Putin, assinou um decreto ontem em que "reconhece" a independência da Crimeia após o referendo realizado no domingo.

De acordo com o texto divulgado pelo Kremlin, o dirigente russo aceita a soberania da região em razão do "desejo" de sua população, que ontem aprovou com 96,7% a separação da Ucrânia e a anexação à Rússia. O gesto de Putin ainda não trata de aceitar o pedido de incorporação ao território russo feito nesta segunda pelo Parlamento da Crimeia.

Putin vai ao Parlamento russo hoje discursar sobre o tema, quando deve sinalizar qual será sua posição. O presidente tem demonstrado nas últimas semanas todo apoio ao movimento do governo da Crimeia para se separar de Kiev e se unir a Moscou. Ontem, a Crimeia solicitou oficialmente para que a península possa adotar o status de República da Crimeia da Federação Russa.

O gesto de Putin em reconhecer o referendo diverge da postura da Ucrânia e de potências como Estados Unidos e membros do bloco europeu de não aceitar o resultado da consulta. Os EUA e a União Europeia anunciaram sanções aos russos como forma de reação ao referendo, o qual consideram ilegal.

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Ainda ontem o Parla­mento da Crimeia divulgou medidas para nacionalizar empresas ucranianas. De acordo com o decreto, todas as propriedades das empresas de gás e petróleo da Ucrânia que funcionam na região passam para as mãos do governo local.

Além disso, foi dada uma opção aos membros das Forças Armadas de Kiev que atuam na região: aderem ao novo governo, fazendo juramento à República da Crimeia, ou terão de deixá-la. Aos servidores públicos, a mesma alternativa será oferecida, com a chance de mudarem de profissão caso queiram.

O decreto menciona as empresas de gás ucranianas Chernomorneftegaz e Ukrtransgaz e diz que os campos de exploração marítima instalados na península são agora do governo local. A medida do Parlamento, no dia seguinte ao referendo de anexação à Rússia, abre caminho para o governo russo usar a estrutura da Crimeia para exploração de gás na região do mar Negro. Especula-se que a manobra deve servir para a Gazprom, empresa russa de energia, comprar as propriedades agora em poder da Crimeia.

Segundo o presidente do Parlamento, Vladimir Konstantinov, ninguém será processado ou sofrerá algum tipo de punição por ser ucraniano. Ele disse ainda que os ucranianos donos de propriedades privadas na Crimeia não perderão a posse do seu patrimônio.

Ucranianos temem que a Rússia avance sobre outras regiões

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Reuters

Enquanto forças da Rússia assumiam o controle da Crimeia nas últimas semanas, a mídia russa começava a se referir a um amplo cinturão de terra no sul da Ucrânia como Novorossiya ou Nova Rússia.

A recuperação do nome da época czarista cai bem com os eleitores russos e remete a uma observação feira pelo presidente da Rússia, Vladimir Putin, em 2008, ao dizer aos líderes da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) que a área continha apenas "russos". Seis anos depois, os ucranianos temem que o comentário possa estar começando a parecer profético.

Num momento em que as Forças Armadas da Rússia realizam manobras de guerra perto da fronteira ucraniana e Moscou ameaça intervir para impedir a violência contra os russos na Ucrânia, muita gente teme que Putin não vá parar na Crimeia e possa tentar se apoderar de mais território no leste e sul do país.

Alguns russos sonham em anexar a maior parte do leste e sul da Ucrânia, cortando o país ao meio e estendendo o controle da Rússia até a fronteira da Transnístria, uma região separatista na Moldávia, que tem forte identidade russa.

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