Ouça este conteúdo
O coronavírus já infectou mais de 8,1 milhões de pessoas nos Estados Unidos, e os casos não param de subir. Em meio à pandemia, uma polêmica ganha força: a possibilidade de ampliar a opção de voto por correio para os eleitores do país, que devem escolher seu presidente em novembro de 2020. Isso porque o preenchimento das cédulas eleitorais é um processo relativamente demorado, o que leva a grandes filas e aglomerações - um ambiente perfeito para o vírus se propagar. É importante lembrar que, ao contrário do que ocorre no Brasil, o voto não é obrigatório nos EUA.
Em cinco localidades - Colorado, Havaí, Oregon, estado de Washington e Utah - os eleitores já votam quase que exclusivamente por correspondência. Em 29 outros estados e no Distrito de Columbia, onde fica a capital dos EUA, Washington, os eleitores não precisam apresentar justificativa para votar via correio. Nesses lugares, um em cada cinco eleitores optou por essa modalidade nas eleições presidenciais de 2016, segundo a think thank Pew Research Center.
Já em um terço dos estados norte-americanos há a exigência de que o eleitor apresente motivo válido e sério para não poder comparecer presencialmente à urna. Ocorre que ainda não está claro se a pandemia será aceita como justificativa por todas as zonas eleitorais. A Suprema Corte do Texas, por exemplo, decidiu em maio que o risco de infecção pelo coronavírus não vai ao encontro das previsões do estado para autorizar o voto por correio.
O processo não é novo: remonta à Guerra de Secessão, na segunda metade do século XIX, quando foi utilizado pelos militares. As regras variam de estado para estado, mas, de forma geral, as cédulas são enviadas aos cidadãos pelo conselho eleitoral antes da data da eleição. Cada envelope de retorno tem um código de barras único, que corresponde à cédula fornecida ao eleitor. As autoridades também lançam mão de métodos para identificar a identidade do votante, como por meio comparação de assinaturas - a da cédula enviada e a que consta no registro eleitoral, por exemplo.
“Nos raros casos em que alguém tenta adulterar as cédulas, esse tipo de conduta geralmente é detectada. Vimos isso nas eleições para o Congresso dos EUA em 2018, em relação ao 9° distrito congressional da Carolina do Norte. Embora nenhum sistema de votação seja perfeito e imune a fraudes, a quantidade de fraudes relacionadas à votação por correspondência é bastante baixa”, afirma Rick Hasen, professor de direito eleitoral da Universidade da Califórnia em Irvine.
Riscos
Mesmo que seja considerado praticamente imune a fraudes e tenha a vantagem de conferir mais flexibilidade aos eleitores, o sistema de votação por correspondência apresenta um risco bastante óbvio: o de que milhares - ou até mesmo milhões, dado o tamanho de uma eleição presidencial - de votos sejam anulados porque os eleitores não seguiram os passos corretamente ou porque a cédula foi devolvida ao conselho eleitoral com atraso. Enquanto nos locais físicos de votação há uma equipe de apoio para auxiliar no preenchimento das cédulas, em casa o eleitor não pode contar com esse mesmo suporte.
Um levantamento da agência de notícias Associated Press divulgado em julho mostrou que mais de 100 mil votos por correspondência foram desconsiderados na Califórnia nas primárias presidenciais realizadas em março nos 58 condados do estado mais populoso dos EUA. Dos quase 7 milhões de votos por correspondência realizados na ocasião, cerca de 1,5% (102,4 mil) foram desqualificados. Numa eleição acirrada, esse é um número que poderia fazer a diferença.
O principal motivo para não considerar esses votos foi o recebimento fora do prazo pelas autoridades. Para que eles sejam computados, a cédula preenchida deve ser postada no correio no dia da eleição ou até mesmo antes, se houver tempo, e ser recebida pelo conselho eleitoral até três dias depois. Muitas cédulas também foram devolvidas sem assinatura ou com rubricas que não correspondiam às originais.
Até as eleições anteriores, a Califórnia fornecia cédulas para votação via correio apenas aos eleitores que assim solicitassem. Em junho, contudo, o governador Gavin Newsom, do Partido Democrata, sancionou uma lei pedindo para que as autoridades eleitorais estaduais enviem o documento a todos os quase 21 milhões de votantes registrados na Califórnia para as eleições de novembro.
Outros riscos apontados por especialistas no assunto incluem lentidão dos governos estaduais e municipais para tratar do assunto, regras locais inconsistentes ou não muito claras e recursos limitados para a aquisição de materiais essenciais para a votação por correspondência, como envelope e scanners, além da falta de planejamento logístico. Eleitores que residem em locais afastados, como os que moram em reservas indígenas ou em vilas remotas no Alasca, também poderiam ser prejudicados.
Republicanos x Democratas
Em meio aos críticos do voto por correspondência está o atual presidente do país e candidato republicano nas eleições de 2020, Donald Trump. Em diversas ocasiões, o presidente manifestou sua opinião contrária ao voto por correio. Em maio, uma postagem do republicano estremeceu as relações de Trump com aquela que, aparentemente, é a sua rede social favorita, o Twitter. O presidente dos EUA fez dois tuítes alegando que era impossível o voto por correspondência ser “qualquer coisa menos que fraudulenta”. O Twitter assinalou as informações como potencialmente enganosas.
No fim de junho, novamente no Twitter, Trump postou que “milhões de cédulas de votação pelo correio serão impressas por países estrangeiros, e outros. Será o escândalo dos nossos tempos!”. À imprensa, o presidente dos EUA disse que os votos por correspondência são o "maior risco" à sua reeleição.
Apesar das críticas, o próprio Trump já usou esse sistema de votação em outras ocasiões, inclusive nas primárias deste ano. Em 2017, o presidente, a primeira-dama, Melania, e a filha mais velha de Trump, Ivanka, viraram manchete por terem preenchido de forma incorreta suas cédulas de voto por correio nas eleições municipais de Nova York. Na ocasião, Melania esqueceu de assinar o envelope, Ivanka enviou seu voto fora do prazo e Trump, apesar de ter assinado o documento corretamente e enviado a correspondência a tempo, preencheu de forma incorreta sua própria data de nascimento - ele escreveu 14 de julho de 1946 em vez de 14 de junho. O marido de Ivanka, Jared Kushner, sequer chegou a devolver a sua cédula ao conselho eleitoral.
A votação por correio também foi criticada pelo secretário de Justiça dos EUA, William Barr, que disse em entrevista à Fox News que o sistema pode "abrir as portas para possíveis fraudes". No mesmo sentido de Trump, Barr sugeriu que as cédulas podem ser roubadas das caixas de correio das residências ou que potências estrangeiras podem tentar interferir no resultado das eleições norte-americanas por meio da impressão de "dezenas de milhares de cédulas falsas".
Os republicanos também têm alegado que o Partido Democrata seria beneficiado com essa modalidade de votação. Estudo publicado recentemente por pesquisadores da Universidade de Stanford, porém, que analisou o impacto dos votos por correspondência nas eleições nos EUA entre 1998 e 2018, apontou que esse sistema nunca beneficiou de forma significativa um partido em detrimento do outro.
De qualquer forma, há mais aceitação por parte de democratas do que por republicanos quanto à medida. Levantamento da Gallup, empresa norte-americana de pesquisa de opinião, feito entre 14 e 28 de abril apontou que 83% dos democratas apoiam o voto postal como opção válida para as eleições de novembro. Entre os republicanos, o índice de aceitação cai para 40%, enquanto 68% dos políticos independentes são favoráveis. O levantamento da Gallup também apontou que a maioria dos americanos (64%) está de acordo com a votação por correspondência. Pesquisas de opinião mais recentes comprovam essa tendência, com os democratas mais inclinados a votar antecipadamente nestas eleições.
Essa diferença, porém, não vem de hoje. O Partido Republicano defende um sistema eleitoral com mais restrições para proteger a integridade dos resultados – um assunto que, aliás, tem bastante aceitação entre seus eleitores. Já o Partido Democrata defende há décadas um sistema eleitoral mais acessível, que não imponha restrições desproporcionais à participação de negros, pobres e jovens, grupos que geralmente estão mais propensos a escolher um candidato democrata.