Em 15 de março de 1974, o general Ernesto Geisel (1908-1996) assumiu a Presidência do Brasil, eleito por um colégio formado por membros do Congresso Nacional e delegados indicados pelas Assembléias Legislativas dos estados. A votação era nominal. Estava em vigor o Ato Institucional n.º 5 de 13 de dezembro de 1968 que permitia ao presidente da República decretar a intervenção em estados e municípios. Também era sua atribuição exclusiva "no interesse de preservar a Revolução" e ouvido o Conselho de Segurança Nacional, suspender os direitos políticos de qualquer cidadão pelo prazo de 10 anos e cassar mandatos eletivos federais, estaduais e municipais. Aquelas drásticas medidas, como tantas outras, podiam ser adotadas sem as limitações previstas na Constituição.
Um dos convidados oficiais para a cerimônia da posse era o general Augusto José Ramón Pinochet Ugarte que em 1973 comandara a invasão ao palácio de La Mo-neda provocando a morte do presidente chileno, Salvador Allende, e instaurando um governo militar por ele conduzido até 1990.
No dia 14 de março, um dia antes da posse de Geisel, subiu à tribuna da Câmara o deputado Francisco Pinto, do Movimento Democrático Brasileiro (MDB) e proferiu grave discurso contra o visitante. Alguns trechos daquela manifestação diziam: "Passa-se à História de duas formas, sr. presidente; pela grandeza ou pela torpeza das ações. O chefe da Junta Militar do Chile, Augusto Pinochet, preferiu parodiar Juvenal: Que importa a infâmia quando fica assegurado o poder? A infâmia de assassinar, coletivamente, operários, mulheres e crianças, para prender um livre-atirador qualquer que, em fuga, em vila operária se homiziara. A infâmia de julgamentos sumaríssimos que inventou para matar inocentes e culpados. A infâmia de mentir ao mundo com seus campos de concentração, tentando justificar os crimes que cometeu contra os que, no poder, não cometeram crimes contra ninguém".
O discurso, com pedido de registro nos anais, seguiu denunciando a prática de violências físicas e morais contra os Direitos Humanos e que os anos posteriores jamais apagariam.
A repercussão das palavras do deputado Francisco Pinto foi enorme. A Constituição vigente mutilava o princípio da imunidade parlamentar ao ressalvar que a inviolabilidade do mandato dos deputados e senadores, por suas opiniões, palavras e votos, não excluía a responsabilidade criminal "nos casos de injúria, difamação ou calúnia, ou nos previstos na Lei de Segurança Nacional" (art. 32).
E Chico Pinto foi denunciado pelo "crime" contra a segurança nacional previsto no art. 21 do Decreto-lei n.º 898, de 1969 que previa a pena de reclusão pela ofensa pública a chefe de governo de nação estrangeira. Um rumoroso processo perante o Supremo Tribunal Federal acarretou a condenação do deputado baiano a vários meses de prisão sem o benefício da suspensão condicional da pena.
Essa referência do passado se confronta agora com a decisão, também da maior corte judiciária brasileira, em favor do jornalista Diogo Mainardi e de outros acusados em face do artigo escrito pelo primeiro e publicado na edição de 3 de agosto da revista Veja. No texto "Quero derrubar Lula" o sensível e valoroso crítico lamenta o desgoverno do Estado brasileiro e acentua que "a melhor receita para o país é uma ampla reforma política. Lula é o maior obstáculo para que ela aconteça. Se ele for derrubado, tem reforma. Se não for, não tem. Lula, como sempre, é um fator de imobilismo e atraso". O ministro Celso de Mello determinou o arquivamento do processo (PET 3486) requerido por um advogado ao argumento de que teria havido "crime de subversão contra a segurança nacional", crime contra a pessoa do chefe de um dos poderes da União e que o artigo estaria "colocando em perigo o regime representativo e democrático brasileiro, a Federação e o Estado de Direito".
René Ariel Dotti é advogado, professor universitário, e autor do livro Proteção da vida privada e liberdade de informação, classificado em primeiro lugar no Concurso Nacional de Letras Jurídicas Prêmio Professor de Plácido e Silva (1978).
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