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Nos Estados Unidos, cidades inteiras do golfo do México foram atingidas pelo furacão Dennis, o quarto em um ano. Quando ele passou e se constatou que os estragos, apesar de enormes, eram menores que os do furacão Ivan, de um ano atrás, o alívio foi grande.

Na Inglaterra, a população está alarmada com o surgimento de uma nova arma do arsenal terrorista: homens-bomba, uma macabra invenção até agora confinada às crises do Oriente Médio e de alguns lugares da Ásia. De volta à América, a paranóia do terror recrudesceu: o governo cogita agora de instalar sistemas antimíssil nos aviões civis e, na tevê, pessoas aparentemente normais declaram que estão muito mais atentas agora do que antes: quando vêem alguém com "um ar suspeito" (seja lá o que isso signifique), denunciam ao policial mais próximo, "just in case". Daí para o estado policial é um pulo.

Enquanto isso, no nosso Brasil, não existem furacões Dennis nem Ivans, temos os mensalões, Marcos Valérios e assessores do irmão do José Genoíno carregando dinheiro na cueca, aquele sacrossanto refúgio da intimidade masculina onde nada chega sem ter sido colocado com plena consciência e assentimento do portador. Não temos homens-bomba, temos homens-mala, a se reunir para distribuir o botim das compras e contratações malcheirosas feitas nos órgãos públicos, com a participação, ou no mínimo, a conivência, dos "companheiros" indicados para funções onde deveria prevalecer a virtu, a virtude cívica de que falavam os clássicos e que deveria ser um pré-requisito para participar da vida pública. É um privilégio.

Fomos poupados de grandes tragédias naturais. E fomos também poupados do fanatismo em todos os campos. Ninguém é fanático a respeito de qualquer coisa séria, no máximo há pessoas que são "fanáticas pelo Atlético ou pelo Coritiba" (primeira opção recomendável), fanáticas por uma escola de samba, fanático por alguma coisa que não mata ninguém, salvo os cardíacos desavisados que morrem de prazer quando seu time ganha um campeonato ou sua escola de samba brilha no Sambódromo.

É bom que continuemos assim pois essa combinação entre beleza natural, relaxamento político e ausência de desastres incontornáveis passou a ter um inestimável valor geo-estratégico nos dias de hoje. Mas, a exemplo do personagem do evangelho que recebeu alguns talentos de seu amo e os guardou enterrados sem utilizá-los com medo de perdê-los ou preguiça pura e simples, corremos o risco de – se existir um Juízo Final para as coletividades humanas – sermos chamados às falas pelo Senhor que nos perguntará como no texto sagrado: "Servo mau e infiel, que fizeste de meus talentos?"

Seria bom, no entanto, que fizéssemos uma depuração de nossos costumes políticos com a maior urgência pois a corrupção endêmica não é uma categoria a ser exibida aos turistas como um traço de exotismo tropical. O Congresso tem obrigação cívica e constitucional de demonstrar que está à altura de seu papel e fazer uma limpeza em regra, autodepurando-se daqueles que não estão à altura de continuar a representar a cidadania. Mas isso tem de ser feito logo, pelos meios legais e regimentais, sem perseguições nem complacências mas com a rapidez e a expediência que garantem a eficácia do exemplo.

E para não perder a viagem, precisamos nos dedicar urgentemente a rever nossos instrumentos de controle interno e externo, essa aparatosa mistura de ministérios, controladorias, corregedorias e tribunais de contas, que cada dia mais está se especializando em realizar autopsias em cadáveres malcheirosos e menos em diagnósticos que permitam a cura dos pacientes. Na realidade, o controle social em nosso país é atualmente realizado por dois grupos: os jornalistas, ávidos de demonstrar sua acuidade e seu acesso às fontes revelando uma roubalheira ainda mais cabeluda do que a revelada pelos seus concorrentes; e as famílias em conflito. Com efeito, os grandes avanços na moralidade nacional se deram quando as famílias brigaram: Pedro Collor brigou com o irmão presidente da República e a nação descobriu que PC Farias comandava um gigantesco esquema de propinas e corrupção nunca totalmente desvendado pelas formas convencionais; o genro do juiz Nicolau brigou com a mulher e o país ficou sabendo do apartamento de Miami e da Lamborghini na garagem, pequenos mimos de que os órgãos de controle público sequer suspeitavam; Celso Pitta brigou com a Nicéia e ficamos a par das peripécias do marido como um substituto à altura do lendário Paulo Maluf; e agora, a mulher do deputado Waldemar Costa Netto briga com ele e ficamos sabendo do misterioso cofre que o parlamentar guarda com ciosa vigilância em seu apartamento.

Donde se pode extrair uma lei heurística: a moralidade na vida púublica brasileira depende, na razão direta, da vigilância escandalosa da imprensa e na razão inversa da harmonia nas famílias dos governantes.

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