O julgamento do mensalão mostrou que não são apenas bandidos de armas na mão que corroem a paz pública: homens de terno, tramando sorrateiramente em seus escritórios, também o fazem
A sessão do julgamento do mensalão em que os ministros discutiram a acusação de formação de quadrilha envolvendo réus como os petistas José Dirceu, José Genoino e Delúbio Soares incluiu um debate sobre o alcance da expressão "paz pública", o bem jurídico que o crime analisado busca proteger. O artigo 288 do Código Penal, que define a formação de quadrilha, se insere justamente no capítulo dos crimes "contra a paz pública", ao lado, por exemplo, da incitação ao crime. Os ministros, na ocasião, ofereceram importantes elementos para compreender no que consiste a paz pública, que merecem ser analisados para além do aspecto técnico.
O crime de quadrilha sempre habitou o imaginário coletivo como representação de um ajuntamento de criminosos violentos, geralmente relacionados aos delitos patrimoniais ou crimes contra a vida; associa-se a noção de quadrilha a ladrões de banco, assaltantes, sequestradores, traficantes ou assassinos. Durante o julgamento, o ministro relator, Joaquim Barbosa, questionou os colegas Ricardo Lewandowski, Rosa Weber e Carmen Lucia que absolveram os acusados de formação de quadrilha argumentando, entre outras coisas, que o mensalão não constituía ameaça à paz pública se era necessário haver sangue para que a paz social fosse abalada. Parecia que os ministros estavam imbuídos justamente da noção de que a paz pública só podia ser violada por meio da agressão física.
O presidente do STF, Ayres Britto, no entanto, expôs com muito acerto que a paz pública é um conceito muito mais abrangente. O "sossego coletivo", nas palavras do magistrado, é uma consequência daquilo que ele descreveu, citando Cezar Peluso, como "confiança, fidúcia, crença que a população tem no controle estatal da criminalidade. (...) A paz pública é essa sensação coletiva; o povo nutre a confiança no seu Estado, como personalização da ordem jurídica diante da criminalidade", afirmou, acrescentando que "a sociedade não pode decair da sua confiança em que o Estado, seja qual for o desafio penal, manterá as coisas sob controle".
Também o decano da corte, ministro Celso de Mello, foi contundente ao afirmar que, em mais de 44 anos de atuação na área jurídica, nunca havia presenciado caso em que o delito de quadrilha se apresentasse tão nitidamente caracterizado, e que a paz pública representa o sentimento geral de tranquilidade e de segurança das pessoas, sentimento esse que lhes permite um convívio social harmonioso, pois o crime de quadrilha constitui, pela mera existência de sua formação, um estado de "agressão permanente contra a sociedade civil".
Ao comentar a duração do esquema dos mensaleiros, Celso de Mello o comparou a "organizações criminosas no Rio de Janeiro e aquela outra perigosíssima que atua no estado de São Paulo" sem citar os nomes, embora fosse óbvio que as referências fossem a grupos de traficantes como o Comando Vermelho e o Primeiro Comando da Capital (PCC). Assim, ele deixa claro que não são apenas bandidos de armas na mão que corroem a paz pública: homens de terno, tramando sorrateiramente em seus escritórios, também o fazem. E, se os ternos são custeados pelo dinheiro público, ainda mais grave é a agressão à sociedade civil, atacada por quem devia agir em seu nome e em seu benefício. Não estamos falando de um caso qualquer. Trata-se, segundo decidiu o STF, da formação de uma associação para cometer crimes, instituída pelos mais altos dirigentes políticos de dois poderes da Nação, em determinado momento histórico.
Os princípios constitucionais da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência da administração pública foram reafirmados pelo Supremo Tribunal Federal como essenciais ao desenvolvimento de uma sociedade justa e igualitária, devolvendo ao Brasil a justa expectativa de que seus representantes respeitem a ordem jurídica, condição irrenunciável para a manutenção da paz pública.
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