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Acredito que como eu, milhões de brasileiros ficaram com a alma lavada ao assistir na TV a catilinária que o deputado Fernando Gabeira despejou sobre o presidente da Câmara Severino Cavalcanti. Aliás, não foi uma catilinária, pois Severino está anos-luz distante de um Catilina; foi o que na linguagem policial se chama de "esculacho". Em vez de gaguejar em resposta a Gabeira "Vossa Excelência recolha-se à sua insignificância", o presidente Severino devia fazer como os malandros que, quando se sentem cercados pela polícia já gritam: "Perdi, perdi! Prende mas não esculacha!". O esculacho é a suprema humilhação, a mais absoluta demonstração de falta de respeito por alguém. E, por suas atitudes e comportamentos, o presidente Severino não merece uma catilinária, merece mesmo é um esculacho. Gabeira não foi desaforado; ao contrário, respeitou o protocolo dos "Vossa Excelência", não escorregou para o xingamento raivoso e sim desnudou a verdadeira estatura moral e política do presidente da Câmara, que se mostra cada vez menos à altura dos anseios da nação que se sente humilhada pelo que algumas de suas lideranças políticas mais expressivas estão ou estavam fazendo com seu dinheiro e suas esperanças, uma nação que exige uma reparação moral rápida e cirúrgica.

Aquele ar de sertanejo simplório do presidente Severino disfarça um espírito esperto, de um profundo conhecedor da alma de seus companheiros de política, que passou anos e anos na primeira secretaria da Câmara fazendo e negando favores, armazenando segredos cabeludos, catalogando deslizes alheios, empregando parentes e correligionários seus e dos outros. É por isso que tenta utilizar com desenvoltura e conhecimento de causa todos os recursos regimentais do parlamento para procrastinar, espichar os processos, desmoralizar os investigadores e dar aos investigados tempo suficiente para que a opinião pública desvie seus olhares para outro lado e os esqueça. Como diz mestre Ricardo Paquini, de onde menos se espera... daí mesmo é que não sai coisa alguma e essa é, no íntimo, a esperança de muitos envolvidos e protagonistas diretos e indiretos da crise: a de que não saia nada de um Congresso tisnado pelo clientelismo, pela ilegitimidade do sistema representativo atual, corrompido pelos lobistas e pelos financiadores de campanhas.

Nisso tudo há um risco considerável, o de que a percepção de impunidade e leniência leve à desmoralização do processo político como um todo, que conduza a população a uma de duas situações igualmente preocupantes: a da apatia cívica total, anômica, na qual os indivíduos se desvinculam espiritualmente da nação e jogam no lixo o conjunto de normas sociais que regem a vida das sociedades humanas civilizadas para tratar de suas próprias vidas por quaisquer meios que disponham; ou no outro extremo, a irritação descontrolada, que transborda para as ruas quando os indivíduos não encontram canais organizados por intermédio dos quais possam reagir e protestar dentro de limites civilizados. A elite política brasileira está flertando com o perigo quando algumas lideranças insistem em afirmar que não existem provas conclusivas de malfeitos nos episódios que dominam a cena brasileira há três meses. "Ah, mas não se tem certeza de que fulano sabia ou se beneficiou da roubalheira!"; "até agora não apareceu uma só prova irrefutável de que...".

Ora, a certeza absoluta não existe no mundo simplesmente porque o mundo é probabilístico, ou seja, existe sempre a possibilidade mesmo que remotíssima de que o que parece certo deixe de sê-lo quando algo acontece que contraria essa convicção (vide Karl Popper). Na vida só existe uma coisa certa que é a morte, e assim mesmo essa certeza é provisória na medida em que a ciência se aprofunda mais no conhecimento dos DNAs e das partículas subatômicas. É por isso que , no domínio do direito e da justiça , onde se codificam as condutas humanas que devem ser evitadas, abolidas ou punidas existe um pressuposto de inocência e de culpabilidade, que não é baseado na "certeza aboluta" do julgador de que o acusado infringiu a lei e merece punição e sim na sua convicção "além da dúvida razoável". Não se pode esperar obter certezas absolutas antes de fazer alguma coisa e sim verificar se a fronteira da "dúvida razoável" foi transposta. Como aceitar que seja razoável que alguém não consiga explicar a origem de milhões de reais que confessadamente manipulou? Ou que não se lembre para quem entregou vultosas quantias? Nem se lembre das razões pelas quais outros milhões caíram em suas contas bancárias? Como duvidar de que existe alguma coisa a esconder quando alguém comparece a uma audiência pública munido de um habeas-corpus para não ser obrigado a dizer a verdade ou se recusa a responder perguntas simples, factuais a respeito de seus bens? Como aceitar que alguém tente desmentir uma gravação em vídeo, atribuindo tudo a uma "armação política" de adversários? Depois disso, a dúvida ainda é razoável?

Ah, na realidade eu tenho uma segunda certeza além da morte. A de que Dona Glorinha, minha sábia e baiana avó, nunca se deixaria enganar por aqueles olhinhos miúdos espremidinhos que adornam o rosto de Severino, que ela definiria, em dileto baianês como "olhos de c... de pinto". Mas a Dona Góia era um caso raro de sapiência e muitos de nós, observadores menos argutos, nos enganamos com aquele jeito de velhinho sabido que explora a própria ignorância como cobertura conveniente para espertezas mais profundas.

Belmiro Valverde Jobim Castor é professor do Mestrado da FAE Business School e membro da Academia Paranaense de Letras.

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