Desde criança, tive que aprender a surfar no olho do furacão e sobreviver era a meta, para não ser engolido pelo crime. Isto sim é coisa de preto. Desta forma, não tão diferente de milhares de famílias brasileiras, a minha também viveu abaixo da linha da pobreza. Pais humildes, pobres e semianalfabetos. E, mediante o sonho de dias melhores, também peregrinamos em busca da melhor qualidade de vida e, mediante as idas e vindas, tive a oportunidade de morar em algumas “favelas” no Paraná, na Bahia e um curto período em São Paulo. Em meio aos becos e vielas e ruas de terra é que vivenciei os encantos culturais das pessoas e dos seus territórios diferenciados.
No entanto, o fato de não ter identidade local com os meus pares foi frustrante. Ao mesmo tempo, éramos anestesiados pela frustração de estar peregrinando e não criar laços com os territórios, com as culturas e com as pessoas. E, quando iniciamos o tão sonhado vínculo afetivo (identificação) com o outro – na escola, nas ruas e com os vizinhos de barracos –, era hora de partir em busca do ouro de tolo. Naquele momento, o medo do novo (desconhecido) era afagado pelas velhas lembranças do futebol nas ruas, de soltar pipa no campinho de terra batida e dos longos jogos de bola de gude que, na maioria das vezes, adentravam a noite. Mas cada local em que pude estar foi um de aprendizado ímpar, que diretamente contribuía para minha indignação ao “levar geral” (revista) da polícia nas ruas ao ir para escola, pois esta é a única política pública constantemente presente nestes espaços (favela), o que, por sua vez, contribui diretamente para a segregação e a marginalização do negro.
Estamos falando de direitos, de vidas ceifadas diariamente, da ausência do Estado, da história da construção desse país
Vivenciamos diariamente nesses territórios as mais diversas mazelas sociais. Nesses espaços, tive o desprivilegio de conhecer os politiqueiros que nos vistam de dois em dois anos com fins da manutenção dos seus cargos. Vi meus irmãos e jovens negros (amigos) serem massacrados, marginalizados e assassinados. Vi meus irmãos e jovens negros (amigos) enveredarem-se para o crime. Vi meus irmãos e jovens negros (amigos) serem ludibriados pelo uso do antedepressivo dos jovens: o crack. Vi meus irmãos e jovens negros (amigos) entrarem para o crime, querendo dias melhores. Vi meus irmãos e jovens negros (amigos) entrarem para o mundo do crime para comprar uma casa melhor aos seus pais, ter um carro para dar um “rolê” (passeio), ter um relógio “da hora” (bonito), ter um tênis ou até mesmo um celular do momento. Mas foi nestes espaços de segregação, e marginalizado, que conquistei minha tão sonhada liberdade, meus estudos em teologia e psicologia, minha família e, no sonho de dias melhores, o pulsar da força de resistência.
Foi nesses espaços e pelos dos ensinamentos dos mais velhos que aprendi a não desistir da luta diária em favor da minha vida, dos meus direitos e dos meus pares, aprendi que, mesmo nos momentos mais difíceis, devemos continuar a sonhar sempre, pois da ponte pra cá nada vem de graça. Nesses espaços, também vi meu pai ser preso algumas vezes durante o regime militar e voltar pra casa de cabeça raspada. Sob agressão, era neutralizado e conduzido pelos pracinhas: na maioria das vezes, ele estava “chapado” (alcoolizado), como muitos seres humanos que não aceitam toda a realidade de dor ao ver seus familiares (filhos) sem projeção de futuro.
Opinião da Gazeta: Precisamos falar sobre racismo (editorial de 19 de março de 2014)
Foi nesses espaços de turbulência constante que, quando adolescente, tive que escolher entre estudar e colher café, algodão e capinar soja para ou migrar para o crime, como muitos dos meus amigos. Tive de aprender a driblar a criminalidade nas lavouras em meio a frio, chuva e calor, e ao mesmo tempo entender das leis nas ruas para não ser mais um jovem negro nas estatísticas da criminalidade, ou seja, ser sugado pelas garras do crime. No entanto, alguns amigos negros que não tiveram a mesma sorte de benção se foram por achar que no crime poderiam conquistar a libertação do sistema “escravocrata” vigente. Nada foi fácil para nós e não será para os pares nos dias de hoje.
O 20 de Novembro reforça nossa luta contra um sistema que nos vê como mais um. É fato que a “Casa Grande” não nos vê como parte do “poder”, somos a parte que entra em cena para uso, somos os buchas nos processos eleitoreiros. Somamos 54% da população, mas na prática somos a minoria nos espaços de poder político, nos gerenciamentos das grandes empresas e nos cargos de elite. E, diariamente, somos convidados a concordar com afirmações como “toda cor é humana”. Absurda afirmação, pois sabemos qual cor é desumanizada diariamente.
Do mesmo autor: E esse futuro que nunca chega? (artigo publicado em 02 de maio de 2017)
Entre os fatos históricos e da atualidade, não dá para aceitar a condição de buchas que nos é imposta pela “Casa Grande”; não dá para seguirmos terceirizando as nossas representações políticas, não dá para olhar para os espaços de poder (Brasília) e saber que existem bancadas para todos os gostos, exceto para os 54% da população. Não dá para aceitar que um ato racista seja apreciado pelos defensores dos bons costumes como um simples equivoco, como William Waack dizendo “É coisa de preto”. Não há como aceitar os números, olhando das arquibancadas, enquanto nossos jovens têm suas vidas ceifadas, pois, segundo pesquisa realizada pelo Ministério Público no primeiro semestre de 2016, no Paraná, quase metade das pessoas mortas pela polícia eram negras. Os números espelham uma realidade tristemente brasileira, como mostram diversos outros levantamentos.
Enfim, que na data de 20 de Novembro, o Dia da Consciência Negra, todos os seres humanos possamos entender que não se trata de “mimimi” ou só de dados, mas de números reais que apontam para um racismo velado, que muitos ainda insistem afirmar ser vitimismo. Estamos falando de direitos, de vidas ceifadas diariamente, da ausência do Estado, da história da construção desse país, que, em linhas gerais, não é contada verdadeiramente e, quando sim, é contada, na maioria das vezes, por um branco que insiste em postergar a verdade, como ocorreu em Belo Horizonte (MG), onde um texto aplicado para leitura dos alunos afirmava que a feijoada é um prato Europeu.
Enfim, muitos sobreviveram ao impacto do racismo, mas muitos ainda vivem a dor de serem estigmatizados constantemente pela cor da pele. Que esta data seja um convite, todos os anos e diariamente, para que possamos refletir sobre nossas atitudes e os pré-julgamento em relação ao outro.
Bolsonaro e mais 36 indiciados por suposto golpe de Estado: quais são os próximos passos do caso
Bolsonaro e aliados criticam indiciamento pela PF; esquerda pede punição por “ataques à democracia”
A gestão pública, um pouco menos engessada
Projeto petista para criminalizar “fake news” é similar à Lei de Imprensa da ditadura