Estamos a um mês do cinquentenário do movimento militar de 1964 e, com isso, deve surgir um grande número de avaliações, revisões, críticas e desabafos sobre os 21 anos em que os militares tutelaram o Brasil. E o que aconteceu há 50 anos ainda aguarda um olhar desapaixonado de historiógrafos e de cientistas sociais, pois, embora Hegel tenha dito que a história é sempre escrita pelos vencedores, no Brasil foi diferente: a história do que aconteceu em 1964 e nas duas décadas seguintes tem sido escrita e reescrita invariavelmente pelos perdedores.
Eu mesmo, que por força da idade acompanhei de perto ou de longe o que aconteceu nos últimos 50 anos, me surpreendo com a maneira com que fatos que presenciei são narrados, com a eleição arbitrária de bandidos e mocinhos como se de um lado (o da oposição aos militares) se agrupassem todas as virtudes, o heroísmo e as intenções nobres e, do outro, se refugiassem todos os vícios e torpezas. Não foi assim; de um lado e de outro matou-se, torturou-se e "justiçou-se" adversários. A barbárie não escolheu lado nem suas vítimas.
À medida que o tempo passa, essa dificuldade em analisar objetivamente o papel dos militares na vida política recente se torna mais e mais difícil; afinal, a grande maioria dos comentaristas e estudiosos não era nascida quando a renúncia de Janio Quadros deflagrou o processo político-militar que resultou na deposição de João Goulart. Como o Brasil não é exatamente uma cornucópia de documentos e informações confiáveis para a pesquisa histórica, é inevitável a repetição de lugares-comuns e de simplismos que parece rondar as tentativas de entender o que aconteceu naquele período.
Este artigo é um checklist básico de fatos e personagens que não podem ficar fora de um trabalho de interpretação do movimento de 1964. Se as pessoas e os fatos citados não estiverem no radar dos candidatos a exegetas e escribas, está na hora de recorrer ao Google e às fontes confiáveis para produzir um relato realmente sério.
Primeiro, as perguntas fáceis: por que 500 mil pessoas em São Paulo e outras tantas no Rio marcharam com Deus e pela liberdade? Seriam todos conservadores? Ou mulheres mal amadas, como queria o cronista Antonio Maria? Ou demonstravam a opinião dominante de amplas áreas da sociedade sobre o governo de João Goulart?
Que eram as Ligas Camponesas? E os Grupos dos Onze? O que pretendiam Francisco Julião e Leonel Brizola quando criaram esses grupos paramilitares? Quem eram os "generais" e "almirantes do povo" e que papel tiveram na quebra da hierarquia dentro das Forças Armadas? E o que era o "dispositivo sindical" de Jango, chefiado por pelegos como Clodomith Riani e Dante Pelacani? Uma pista: os generais e almirantes do povo, como os almirantes Candido Aragão e Paulo Mário e o general Osvino Ferreira, brincavam de populismo com cabos e soldados, enquanto Pelacani e Riani "aparelharam" o Ministério do Trabalho, aliás de uma maneira muito mais tosca do que acontece nos nossos dias. Google neles!
Leituras obrigatórias? O Retrato, de Osvaldo Peralva, e Combate nas Trevas, de Jacob Gorender, dois relatos insuspeitos a respeito da reação da burocracia do Partido Comunista Brasileiro ao Relatório Kruschev e à denúncia dos crimes do regime stalinista, o mesmo que até hoje, meio século depois, provoca suspiros de admiração em alguns hierarcas da esquerda brasileira. E A Ditadura Envergonhada, de Elio Gaspari, uma fotografia sem retoques dos primeiros anos do governo de Castello Branco e do período que precedeu o embrutecimento do regime sob Médici. E, por fim, o artigo de Marco Antonio Villa no Estadão de 19 de fevereiro, "Golpe à brasileira".
Se, apesar dessas cautelas, os eventuais escribas preferirem insistir nos clichês e nos simplismos maniqueístas, é sinal de que não lhes interessa produzir uma historiografia sine ira et studio, sem raiva nem emoção, como sugeriu Max Weber, e sim vocalizar suas opiniões pré-concebidas.
Belmiro Valverde Jobim Castor é professor do doutorado em Administração da PUCPR.
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