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A adoção como inequívoco ato de amor ao próximo

Imagem ilustrativa. (Foto: Shutterstock)

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A Constituição Federal baniu qualquer distinção pretérita entre filhos consanguíneos e adotativos. De fato, não havia razão para qualquer diferença de tratamento normativo, notadamente se considerarmos que todos nós, em essência, fomos “adotados” pelos nossos pais. “Adotados” não em decorrência de um complexo processo de adoção previsto pelo Direito; “adotados” enquanto destinatários de um ato de sublime amor ao próximo, cujo fundamento cristão é encontrado na regra de ouro insculpida por Deus.

No caso dos filhos consanguíneos, esse “processo de adoção” – permitimo-nos chamar assim – ocorre já no ventre materno, quando pais e filho(s) começam a cultivar a mais notável forma de relacionamento humano, forjando e estreitando o liame afetivo que tanto caracteriza essa relação. Durante o seu caminhar gestacional, o nascituro, cada vez mais “adotado” – no sentido de amado – pelos pais biológicos, recebe deles cuidado, carinho e atenção; e mesmo antes de se saber o sexo, lhe é dado um nome que o individualiza como um novo e único ser humano.

A vida de cada um de nós é marcada por dramas e angústias que nos levam a tomar decisões que nem sempre estão em sintonia com a dita regra de ouro.

Não raro os genitores se veêm conversando com o bebê, chamando-o pelo nome escolhido, conforme menino ou menina. Em certa fase, ao ouvir as vozes de seus pais, ele até mesmo “responde” por meio de “chutes” na barriga da mãe. Para muitos, uma inequívoca prova de que já percebe a própria existência enquanto filho amado de seus pais. A gestação, então, funciona como um autêntico “processo de adoção”.

Infelizmente, por razões que escapam aos limites deste texto, não se sabe ao certo os reais motivos pelos quais alguns pais biológicos, quando da notícia da gravidez, não assimilam e desenvolvem esse “processo de adoção” do filho que está por vir à luz. E convém deixar claro que não estamos aqui para julgar quem quer que seja. A vida de cada um de nós é marcada por dramas e angústias que nos levam a tomar decisões que nem sempre estão em sintonia com a dita regra de ouro.

De fato, a infinita complexidade comportamental humana impede que se formule uma única e singela explicação para essa tormentosa questão, que certamente transcende a própria inteligência racional. Mas de uma coisa estamos absolutamente certos: se por um lado devemos procurar compreender (e não julgar) a mulher que opta por não criar seu filho, por outro é direito fundamental do nascituro ter a sua vida preservada, receber amor e tratamento digno.

O Estado ainda não reconhece uma realidade: adultos e crianças elegem-se afetivamente como pais e filhos, cabendo ao Direito concretizar essa relação, e não impedi-la.

De qualquer forma, atentando para as devidas e evidentes peculiaridades, não é desarrazoado dizer que idêntico “processo de adoção” – enquanto ato de amor ao próximo – é observado em relação ao filho adotivo, expressão esta empregada em sua tradução jurídica, na forma como estabelecida pelo Ordenamento Jurídico. Não obstante o fato de diversos relacionamentos intersubjetivos serem regulados pelo Direito, a boa notícia é que o “sentir-se pai” e o “sentir-se filho” são sentimentos que transcendem a disciplina jurídico normativa.

Nem mesmo o mais previdente dos Poderes pode prever quando e onde se forjarão vínculos afetivos típicos da relação pais-filhos. O “ser pai” ou o “ser mãe” supera em muito o simples ato de gerar um filho. O sentimento de amor ao próximo tem o poder de funcionar como uma autêntica liga destinada a selar a aliança entre pessoas que se escolhem por pais e filhos. Significa dizer, em última análise, que não cabe ao Direito emoldurar o amor ao próximo. Muito menos o amor entre aqueles que se “escolhem” para pais e filhos, relação que transcende a qualquer parâmetro normativo que eventualmente o Estado possa fixar.

Exemplo eloquente disso é o fato de adultos e crianças mesmo sem qualquer relação consanguínea, “escolherem-se por pais e filhos”, em termos de vínculo afetivo e independentemente das imposições normativas. Conforme esclarece João Baptista Villela, na obra A Desbiologização da Paternidade, “ser pai ou ser mãe não está tanto no fato de gerar quanto na circunstância de amar e servir”. Isso nos instiga a uma reflexão a respeito do sistema de adoção existente no país, particularmente quando se nota que o Estado ainda não reconhece uma realidade: adultos e crianças elegem-se afetivamente como pais e filhos, cabendo ao Direito concretizar essa relação, e não impedi-la.

Não estamos querendo dizer que as regras relativas ao modelo de adoção vigente no Brasil devam ser totalmente flexíveis. É óbvio que a matéria, pelo grau de importância do qual se reveste, deve receber a incidência da normatividade. Afinal, ninguém em sã consciência duvida que a preocupação estatal quanto ao interesse da criança e do adolescente é legítima. O que causa certa perplexidade é constatar que o Estado, desconsiderando o sentimento que fez com que determinadas pessoas se “escolhessem como pais e filhos”, praticamente inviabiliza a adoção, impondo aos candidatos à paternidade adotiva uma prévia, necessária e insuperável inscrição no Cadastro Nacional de Adoção (CNA), dentre outras condicionantes e até mesmo concepções arraigadas no sistema brasileiro de adoção.

Com efeito, o que se advoga aqui não é a eliminação desse cadastro. O que se pretende é demonstrar que o Direito não pode simplesmente desconsiderar a realidade, como se ela não existisse. Ao agir assim, o Estado, em algumas ocasiões, acaba por figurar como obstáculo ao processo adotivo, quando deveria ocorrer justamente o contrário: atuar como um poderoso facilitador, viabilizando a desejável comunhão afetiva entre os envolvidos nesse processo.

Reis Friede é desembargador federal, mestre e doutor em Direito e professor adjunto da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). Foi presidente do Tribunal Regional Federal da 2ª Região no biênio 2019/21.

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