O descrédito dos intelectuais contemporâneos surge com a decadência de seus intelectos. Sem qualquer vergonha, nos últimos anos alguns saíram do armário e deixaram as antigas vestes de pensadores para assumirem de vez sua militância progressista. Outros, ainda enrustidos, tentam mascarar suas ideologias coletivistas com posturas sisudas, “técnicas” e isentas. E ainda existem aqueles que travestem suas ideias conforme a “música” do momento.
Se em uma crise de meia-idade descobre-se a perda do brilho da juventude e o início de uma opaca velhice, pode-se afirmar que a intelectualidade se encontra nesse estágio. Seus membros, antes vistos como ilustres sábios por boa parte da sociedade, nos últimos anos caíram em desgraça na mesma proporção de boa parte dos grandes veículos de comunicação. Assim, como as pessoas que atravessam aquela fase da vida, estes intelectuais passaram a conviver diariamente com a insegurança das mudanças sociais e políticas ocorridas. Desanimados com a falta de aceitação social, desenvolveram um saudosismo por um passado político recente “nunca antes visto na história” dos intelectuais. No fundo, a revolucionária intelectualidade contemporânea é bastante reacionária. Em alguns casos, buscando o sossego da solidão como forma de não serem perturbados pelos governos “fascistas” ou cobrados pela sociedade, os mais abonados optaram pelo autoexílio. Nunca nos “paraísos” socialistas, mas sempre em países alinhados com o “demoníaco” capitalismo, como Alemanha, Estados Unidos e França.
As acusações mais levianas sobre a origem dessa rejeição pública à classe intelectual repousam naquilo que poderia ser denominado de anti-intelectualismo. Na essência, esse movimento teria asco a tudo que é produzido por estudiosos nas mais diversas áreas do conhecimento. Nos dizeres da “autoexilada filósofa” Márcia Tiburi, “há um ódio que se dirige atualmente à inteligência, ao conhecimento, à ciência, ao esclarecimento, ao discernimento”, o que definiria o anti-intelectualismo. Em suma, é a negação bestial daquilo que o intelecto humano supostamente é capaz de produzir de mais glorioso para a resolução dos seus problemas.
Mas aqui mora um perigo, visto que em toda impulsiva incriminação há uma ausência de prudência. No caso em questão existe um adicional: a maldade ideológica por parte dos acusadores. Dentro da miopia progressista, o espaço para críticas centrais às suas diversas formas de pensar no mundo deve estar resguardado no esquadro dos aspectos toleráveis definidos pelo próprio progressismo. Em resumo, as mirabolantes ideias de um progressista só podem ser criticadas legitimamente por outro progressista. No jogo de aparências desenvolvido não existe uma real discordância. E todo aquele que afrontar o “tolerável” ou desaprovar alguma “vaca sagrada” da esquerda será classificado como antidemocrático, reacionário, machista, sexista, racista, homofóbico e intolerante. Para estes mestres do pensamento esquerdista, a pluralidade deve ser entre iguais.
Em alguma medida, os que denunciam uma suposta existência no Brasil de um movimento anti-intelectual são bons exemplos do que foi dito e padecem dos males que atribuem a seus antagonistas. Ou, para ficar em um caso, alguém duvida que Márcia Tiburi não é o pleno enquadramento da definição de anti-intelectualismo? Nesse embate, no córner vermelho está o progressismo, ao passo que no córner azul está o conservadorismo, apelidado pejorativamente (e com muita ignorância) de reacionarismo. Desta forma, pode-se afirmar sem dúvida alguma que, na linha de raciocínio progressista, a anti-intelectualidade congrega tudo o que se contrapõe ao seu modus operandi. Para a “fina flor” da falsa erudição, se existe alinhamento mental com o dito “progressismo”, aqui há uma intelectualidade, ao passo que, se sobram proximidades com o conservadorismo, aqui jaz anti-intelectualidade.
Desta forma, o “progressismo” tenta blindar-se das críticas mais contundentes e severas, sempre atribuindo ao seu inimigo uma imaginária aversão à sabedoria e à racionalidade, o que constituiria uma prática irregular para o embate de ideias. Como maciçamente os “especialistas” da grande mídia são “progressistas”, algo que se reproduz (ou é reflexo?) nas universidades, vende-se a ideia de que a menor discordância das ideias “iluminadas” significa o início do obscurantismo. O encanto da maior parte dos veículos de comunicação com essa vanguarda a favor do “progresso” produz a inventiva perspectiva de consenso sobre uma abordagem, o que por inúmeras vezes não corresponde à realidade. O meio acadêmico, recluso em seus prédios, concebe ideias “inovadoras” estapafúrdias que são continuamente aplaudidas entre os pares, o que infla o ego dos “especialistas”.
Em razão de esses experts não lidarem muito bem com a verdadeira oposição de ideias, qualquer rejeição à sua visão de mundo ou agenda ideológica é sinônimo de irracionalidade. Nada mais natural; afinal, um “progressista” crê piamente que seus ideais representam a marcha do progresso. Logo, se alguém é um firme obstáculo às suas convicções, deve ser alguma besta não esclarecida. E se tal atitude “retrógrada” provém do povo, do senso comum, pior ainda; afinal, não se espera algo de diferente do ignorante patuléu que precisa ser instruído adequadamente para pensar e executar as teorias dos visionários de gabinete.
No fim de abril de 2020, uma professora de Direito de Harvard, Elizabeth Bartholet, fez uma severa crítica ao homeschooling, também chamado de educação domiciliar no Brasil. Em sua visão, exposta na Harvard Magazine, tal situação é descrita como extremamente perigosa para as crianças em razão do controle autoritário que os pais têm sobre seus filhos no cenário da educação domiciliar. Com a firme ideia de que este modelo educacional deve ser banido, Bartholet diz que qualquer prática que não oferte uma “educação significativa” (uma educação que faça sentido) estaria violando os direitos das crianças ao impedi-las de contribuírem positivamente para uma sociedade plural e democrática. E, sem titubear, acrescentou que o homeschooling não protege as crianças de serem abusadas, visto que, ao isolarem os infantes do convívio público, principalmente no caso das crianças de 4 a 5 anos de idade, os principais “repórteres obrigatórios”, os professores, que alertam as autoridades diante das evidências que remetem a abusos ou negligências, não conseguiriam cumprir tal tarefa exatamente pelo fato de a criança não estar na escola. De acordo com ela, tais violências perpetradas por pais que defendem o homeschooling são comuns nos EUA.
Ao falar sobre a realidade norte-americana, Bartholet declarou que as situações de homeschooling só estão regulamentadas com as exigências mínimas para que os pais possam executar essa prática em 12 dos 50 estados dos EUA. Isso traz como consequência que há a possibilidade de que pais que não sabem ler possam manter seus filhos longe da escola privando-os do conhecimento, o que, de acordo com a professora, não seria algo incomum.
Fazendo referência a um longo artigo de sua autoria, publicado na reconhecida Arizona Law Review, Bartholet reforça que os pais escolhem a educação domiciliar, de acordo com pesquisas, por inúmeras razões: proteção contra bullying, possibilidade de práticas esportivas diversas ou até mesmo flexibilidade de horários para outras atividades. Mas, na maior parte dos casos (mais de 90%), os norte-americanos optam por retirar seus filhos das escolas porque são cristãos conservadores que não concordam com a cultura “progressista” do sistema de ensino, o que para ela constitui um grave erro, pois estes pais não estariam engajados com os valores democráticos, com o fim da discriminação e com o ideal de tolerância. E a professora reforça que existem casos em que algumas famílias duvidam do valor da ciência, estimulam a subserviência feminina e a supremacia branca.
Assim, frente a este verdadeiro atestado de atrocidades infantis, resta a Bartholet apresentar o seguinte questionamento retórico: “nós achamos que os pais devem ter todo o tempo, essencialmente um controle autoritário sobre seus filhos de zero a 18 anos?” Como uma levantadora de vôlei que coloca a ponteira pronta para finalizar, a professora responde: “Eu acho que é sempre perigoso colocar pessoas poderosas no comando de impotentes, e dar total autoridade aos poderosos”. Logo, banir o homeschooling é a solução.
Bem, sem se dar conta do que falou, Bartholet é exatamente a poderosa que quer guiar os impotentes. Afinal, é a “especialista” que deseja planejar a vida social dos “ignorantes” e “reacionários” pais que não sabem educar seus filhos. Como na crítica “racialista” e “elitista” feita pelo mainstream aos homens brancos, de baixa instrução e do interior dos EUA que elegeram Donald Trump, a “estudiosa” direciona sua raiva aos cristãos conservadores. E é na escola que se aprendem os valores do pluralismo e da democracia...
Esta espécie de “intelectual”, além da mera arrogância que caracteriza boa parte da classe “pensante”, julga-se poderosa o suficiente para modificar, de um gabinete, a vida dos cidadãos. Estes “sábios” acreditam estar vivenciando a ascensão das trevas morais, sociais e políticas por não comungarem de nenhum dos valores conservadores que emergiram nas eleições recentes ao redor do mundo ocidental. E, diante disso, creem que a iluminação típica das divindades esteja pairando sobre suas cabeças para que elaborem ações sociais que “eduquem” compulsoriamente os indivíduos.
No caso da professora, expressando o mais íntimo rancor para com cristãos e conservadores, e generalizando casos pontuais de abusos e maus-tratos com crianças por parte de seus pais para justificar suas alegações, há a construção de uma narrativa que transpõe a luta de classes para dentro do seio familiar, seguindo no melhor esquema dos herdeiros do marxismo. Enquanto os pais são vistos como “poderosos” e “autoritários”, os filhos são classificados como “impotentes”. É a versão de opressores versus oprimidos turbinada pelo homeschooling. Com essa preconcepção entendida como verdadeira dentro da narrativa fantasiosa de Bartholet, existe um firme espaço que legitima o banimento da educação domiciliar. Afinal, como alguém pode defender uma educação que não seja significativa, com abusos, negligências e atos tirânicos dos pais, supostamente algo típico de famílias conservadoras cristãs que defendem a intolerância, o preconceito, o racismo e a misoginia, algo avesso à democracia? Se a narrativa está certa, a professora “especialista” está correta. E como não estar certa em um mundo constantemente narrado por “progressistas”?
Como bem apontou o professor Tom Lindsay em artigo para a Forbes, Bartholet não tem nenhuma evidência que consiga comprovar suas principais alegações, quais sejam, a de que existem abusos constantes contra crianças em educação domiciliar. Citando um estudo do pesquisador Brian D. May, intitulado “Child abuse of public school, private school, and homeschool students: evidence, philosophy, and reason”, publicado em 2018, Lindsay aponta que existem índices relevantes de abusos contra crianças cometidos por funcionários de escolas, exatamente aqueles que seriam “repórteres obrigatórios” para denunciar tais violências. E ainda acrescentou, citando May, que, com os dados disponíveis até o momento, pode-se dizer que “a taxa de abusos de crianças em famílias homeschool é mais baixa do que o público em geral”.
A conclusão mais simples e objetiva é a de que os “especialistas” são pródigos em ideologias e escassos em evidências. Não há laço de amizade entre um “progressista” e os fatos. E Bartholet é só mais um exemplo que resume essa realidade. Estes “estudiosos” para o “progresso” não se envergonham em proferir ideias que não correspondem a fatos porque são adulados pela grande mídia sem sofrer o mínimo desconforto do confronto firme de ideias. Assim, encontram um terreno fértil para atingirem a tradição e as atitudes de vida daqueles que não gozam de seus prestígios: os cidadãos comuns.
Todavia, o Brasil tem “sua” Bartholet. Aliás, com um ano de antecedência e expressando a mesma opinião de Bartholet, o professor Paulo Modesto, da Universidade Federal da Bahia (UFBA), já defendia praticamente as mesmas ideias no ano de 2019. Em texto divulgado no site Conjur, intitulado “Homeschooling é um prejuízo aos direitos da criança e do adolescente”, Modesto não foi modesto nas críticas ao ensino domiciliar.
Defendendo como a escola é um local de aprendizado, de reconhecimento e de “equalização de diferenças”, Modesto diz que o homeschooling “promove o enclausuramento do educando e o torna vulnerável a discursos homogêneos, estritamente vinculados à ideologia dos pais ou de grupos em que estes estejam inseridos (igreja, partido, sindicato), sem participação plural ou o contraditório de outra instância crítica. Há perda da vivência comum ou coletiva, risco acrescido de negligência e violência doméstica, enfraquecimento do sentido de horizonte comum e de cidadania”. Ainda acrescentou que a escola é um local que protege as crianças contra violência doméstica, pois permite a fiscalização comunitária do desenvolvimento das crianças e adolescentes. Só não apareceram as palavras “autoritário” e “perigoso”. Lembrando que “igreja” equivale a cristão e que “cristão”, na mente de “progressistas”, equivale a conservador, logo, na prática, não faltou palavra alguma. De resto, Bartholet parece ter copiado a tese do professor da UFBA, o que mostra o “internacionalismo” do “progressismo”. Claro que os críticos dirão que é uma teoria da conspiração...
Da mesma maneira, as assertivas de Modesto são um produto exclusivo de seu intelecto. Nada do que afirmou guarda correlação necessária com a realidade. Na essência é a sua ideologia que está sedenta pelo poder de determinar os caminhos da educação domiciliar no Brasil. Como pode-se afirmar que há enclausuramento do educando? Ele não pode conviver com outras crianças e adolescentes? E como os filhos ficam vulneráveis às ideologias dos pais sem convívio plural? Na escola brasileira não existem indícios de uma doutrinação ideológica? Pode-se falar em risco acrescido de violência doméstica com base em que evidências? Por qual razão se enfraquece a cidadania? A ideia de uma adequada cidadania só se aprende na escola? Mesmo com o Brasil ocupando péssimas posições em rankings internacionais que avaliam nossos estudantes, a escola é um local de aprendizado? Vivência coletiva só ocorre na escola?
No fundo, Modesto e Bartholet, ao expressarem de forma cifrada que tudo é na escola, nada contra a escola, e nada fora da escola, dialogam com a célebre frase de Mussolini que ajuda a entender o conceito de fascismo: “Tudo no Estado, nada contra o Estado, e nada fora do Estado”. O fato é que a imaginação totalitária nem sempre se julga totalitária. Tentando esquivar-se do suposto autoritarismo familiar e de todos os males “antidemocráticos” que parecem representar o espírito dos lares daqueles que optam pela educação domiciliar, os dois “pensadores” recaem na fantasia de um mundo perfeito no ambiente escolar. No melhor modelo do seriado de humor Chaves, os intelectuais fazem tudo “sem querer querendo”: rejeitam modelos tirânicos propondo tiranias; defendem a pluralidade de ideias prescrevendo uma única visão de mundo; “livres” de preconceitos e embebidos de tolerância, não perdem tempo em rotular negativamente cristãos e conservadores; criticam as ideologias sendo ideólogos; contrários à discriminação, são campeões em discriminar.
Se existe um movimento flagrantemente anti-intelectual denunciado por intelectuais, é exatamente aquele que é liderado pelos próprios intelectuais. Famintos por militância “progressista” e empanturrados de ideologia esquerdista, seus membros, com ampla predominância no ambiente acadêmico, seja nos EUA ou no Brasil, lançam mão de um sentimentalismo travestido de pseudociência para defenderem agendas doutrinárias importantes para suas causas. Estes “pensadores” refletem o que há de mais anticientífico, paranoico, obscuro, avesso à sabedoria e incapaz de racionalidade que a humanidade conseguiu produzir. Podem ter a chancela de instituições de ensino renomadas, que foram paulatinamente aparelhadas pelo corporativismo “progressista”, mas não escondem o quão afastadas estão suas ideias de uma razoável instrução intelectiva.
A verdadeira anti-intelectualidade é nociva para a sociedade. Mitomaníacos por natureza, estes “sábios” adulteradores da realidade mentem compulsivamente sobre fatos para agradarem seus cúmplices, para obterem notoriedade pública, para ascenderem na carreira universitária e para implementarem suas fantasias teóricas. Não há perigo maior do que estar à mercê destes autoritários.
João L. Roschildt é professor do curso de Direito do Centro Universitário da Região da Campanha (Urcamp) e autor de A grama era verde.
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