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A arte em vertigem na era da informação descentralizada

Cena do documentário "Democracia em Vertigem"
Cena do documentário "Democracia em Vertigem" (Foto: Divulgação)

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Em meio à turbulência política dos últimos anos, talvez nosso maior aprendizado tenha sido o reconhecimento da liberdade de expressão, ainda que a duras penas. É emblemática a indicação ao Oscar do documentário Democracia em Vertigem (dirigido por Petra Costa) não apenas por razões políticas, mas também por desdobramentos da nova era informacional. Trata-se da difusão de informações de forma ampla e de baixo custo, fruto da inovação tecnológica que está promovendo mudanças sem precedentes no mundo. Para compreender como as artes estão inseridas nesse novo paradigma, é necessário dar um passo atrás para, em seguida, avaliar se as famosas fake news conseguem explicar os atuais conflitos e o mal-estar da sociedade.

A associação quase inevitável entre produção de ideias e seu contexto histórico leva-nos à ideia equivocada de que as artes devem ser necessariamente engajadas. Em primeiro lugar, se assumirmos que a história sugere elementos cíclicos, nem tudo que propomos é realmente novo. Em segundo lugar, as artes pressupõem elementos comunicativos que não se limitam à cultura ocidental e a contextos socioeconômicos. Como consequência, a subjetividade artística não deve ser confundida com relativismo, dada a própria natureza comunicativa das artes.

Com a transformação científica e tecnológica do último século, é natural que o meio artístico passasse por mudanças. No início do século XX, as artes experimentaram cinco correntes vanguardistas: expressionismo (1912), cubismo (1907-14), futurismo (1909), dadaísmo (1916) e surrealismo (1924). Ainda que as estéticas artísticas não sejam contemporâneas em todos os segmentos — como a música e a pintura —, é possível estabelecer um fio condutor de acordo com o espírito de cada época (zeitgeist). Na música serialista da década de 1920, por exemplo, muitos acreditaram que Schoenberg havia descoberto um sistema que garantiria a supremacia da música alemã por mais alguns séculos. Com a instrumentalização para fins políticos, essa objetividade artística acabou sendo tristemente apropriada pelos discursos de Goebbels a partir da década subsequente.

De outro modo, ao propor a desconstrução da estética normativa e do conceito de obra de arte, Marcel Duchamp plantou — ainda que de forma inconsciente — a semente do relativismo para moldar a subjetividade. Considerado um dos principais representantes do dadaísmo, Duchamp argumentava que o próprio artista é quem decide atribuir a um objeto o status de arte. É razoável imaginar que essa ideia não ficasse restrita às artes, pois sua visão sedutora foi facilmente expandida à própria linguagem.

Com relação ao urinol (Fontaine), uma das principais obras de Duchamp, talvez ninguém tenha sido tão audacioso quanto Pierre Pinoncelli — artista performático francês. Ao sugerir que essa obra havia perdido seu valor provocador, Pinoncelli urinou e quebrou algumas de suas réplicas com um martelo na década de 1990. Pinoncelli defendeu-se ao argumentar que era iconoclasta, e não vândalo. Afinal, alguém poderia pensar: se o artista é quem atribui o status de arte ao objeto, quem poderia equiparar arte performática ao vandalismo? De qualquer forma, Pinoncelli respondeu a processos e, em 2006, foi condenado a pagar uma multa de 200.000 euros. Contudo, engana-se aquele que imagina que o urinol seria o limite. No Museu de Arte Moderna de Cáli (Colômbia), Pinoncelli cortou a falange do seu dedo numa performance, borrando a parede com seu sangue num “ato artístico de protesto”.

O nu artístico, elemento bastante presente na história da arte, também é elucidativo nesses engajamentos “pós-dadaístas”. O quadro realista l´origine du monde, por exemplo, despertou inquietações em Deborah Robertis, a ponto de a artista luxemburguesa realizar uma performance insólita diante dessa célebre pintura, exposta no Musée d’Orsay (Paris). Ao som de Ave Maria, Robertis sentou-se com suas pernas abertas, expondo a genitália, enquanto o público do museu ouvia sua voz sussurrada ao fundo: “eu sou a origem, eu sou todas as mulheres...” Outras performances inusitadas de Robertis foram documentadas pela imprensa internacional nos últimos anos, a exemplo de sua nudez diante do santuário francês de Nossa Senhora de Lourdes. Esse cenário “pós-dadaísta” vem contribuindo sistematicamente para transformar a arte num meme. Sendo assim, a “banana da obra de arte” — exposta no Art Basel de Miami em 2019 — está longe de ser um exemplo isolado.

Não estou desqualificando a arte do século XX e tampouco sugiro que não exista arte genuína atualmente. Isso não faz sentido e não se coaduna com minha história, pois eu me dediquei a interpretar diversas obras musicais em vários palcos do mundo, durante anos a fio. Apenas observo que a falta de espaços e o conflito dos artistas com a realidade parecem deixar o cânone artístico em nichos cada vez menores. Mas, afinal, o que essa estética “pós-dadaísta” sugere na nova era da informação descentralizada?

Em 2016, o mundo parece ter entrado “em vertigem” em razão da eleição de Donald Trump, do impeachment de Dilma Rouseff e do início do Brexit. Esses acontecimentos políticos ainda são fortemente atribuídos às famosas fake news, mesmo diante de massivas mensagens negativas de vários lados do espectro político, conforme inúmeras matérias destacam. Além disso, é bastante curiosa a pesquisa do Ibope sobre o impacto negativo que as mensagens enviadas pelo WhatsApp teriam causado no primeiro turno das eleições de 2018. O Ibope verificou que 25% dos eleitores afirmaram ter recebido notícias falsas, dos quais 24% disseram que as mensagens influenciaram o voto, concluindo-se, portanto, que a influência das mensagens negativas foi de apenas 6%. Na atual conjuntura política, muitos questionaram o resultado dessa pesquisa do Ibope.

Está ficando cada vez mais evidente que a maneira de explicar os acontecimentos políticos recentes é por meio de um novo paradigma tecnológico, baseado na distribuição de informações de forma ampla e de baixo custo. Essa nova ferramenta tecnológica concorre com a informação hierárquica (caracterizada pela mídia tradicional e pelo conhecimento acadêmico). Até o início do século XXI, grandes agentes buscavam notícias relevantes no mundo, a fim de adaptá-las à realidade local. De forma análoga, autores consagrados e pesquisadores escreviam livros e artigos científicos que eram adaptados de forma didática para — após passar por todo esse percurso hierárquico — serem distribuídos ao grande público.

Esse paradigma foi, no entanto, rompido com a nova era da informação descentralizada. Ainda que boa parte da população forme opinião com base em estruturas hierárquicas de conteúdo, essa mudança paradigmática viabilizou um contingente enorme de informações na sociedade. Como consequência, criou-se uma enorme rede de informações na qual somos produtores e consumidores de conteúdo de qualquer tipo e a cada instante. Desse modo, iniciou-se um novo curso na difusão de informações, mas somente agora os efeitos desse novo paradigma se tornaram mais evidentes.

Publicamente, as estruturas hierárquicas de informação consideram-se isentas, pois alegam que estão questionando os fatos e os atores do cenário internacional de forma crítica. Entretanto, múltiplas fontes descentralizadas de informações identificam o direcionamento e a parcialidade com muita facilidade. Essa é a razão pela qual a política acaba sendo o campo de batalha atualmente.

É natural que os detentores de fontes hierárquicas de informações reajam a esse novo paradigma tecnológico, principalmente por serem expostos e por perderem antigas fontes de financiamento. Não é por acaso que mídias tradicionais e entidades centralizadas atacam as redes sociais com frequência, a fim de exercer algum tipo de controle. Para tanto, alegam discurso de ódio e recorrem a artefatos linguísticos, em decorrência da grande concorrência oriunda desse novo paradigma.

Engana-se aquele que pensa que esse novo paradigma está restrito à política, pois até mesmo teorias científicas e interpretações de fatos históricos são duramente questionadas. Trata-se de um processo inevitável e fora do controle de entidades centralizadas. Apenas a liberdade de expressão fará com que pessoas se convençam da incoerência de certas visões de mundo no longo prazo.

A mais recente prova de que as fakes news estão longe de explicar os recentes conflitos políticos da sociedade é a eleição de Taiwan, cujo evento está fora do escopo da discussão política entre direita e esquerda. Em janeiro deste ano, ocorreram as eleições na República da China (Taiwan). Tsai Ing-Wen do partido DPP reelegeu-se com 57,1% dos votos contra 38,6% (Han Kuo-yo - KMT) e 4,3% (James Soong - PFP). Foi a maior margem histórica das eleições de Taiwan.

O KMT tornou-se oposição mesmo sendo historicamente mais forte e, portanto, o maior partido. A principal plataforma do DPP, por sua vez, consiste na busca de reconhecimento internacional como um país independente da China Continental. Mesmo com dinheiro e capacidade de influenciar a população, a China e o KMT não foram capazes de influenciar as eleições de 2020 em Taiwan.

Inicialmente, as pesquisas mostravam que o KMT ganharia facilmente as eleições com aproximadamente 51% contra 34%, cuja previsão se manteve até meados de 2019. Nos meses subsequentes, houve uma mudança substancial, visto que Taiwan, ao contrário da China, não exerce tanto controle sobre a internet. A China financiou abertamente o KMT e acusou o DPP de todas as formas, cujas estratégias são bastante conhecidas no Brasil. Não se surpreenda se alguém ligado ao KMT disser que as eleições de Taiwan foram fraudadas por agentes ocidentais infiltrados. Diga apenas que a estrutura hierárquica informacional do Ocidente é pró-China e complemente: próximo assunto por gentileza.

O resultado de eleições era mais previsível no passado, uma vez que os canais de informações centralizados viabilizavam o monopólio do discurso para favorecer alguma ideologia política. Atualmente, essa prática é impossível porque é inviável subornar, em conjunto, a mídia hierárquica tradicional e a rede de informações descentralizadas, como o Twitter, YouTube e WhatsApp. A maioria interpreta esses acontecimentos políticos como fake news, cuja perspectiva parece ser uma tentativa de dar sobrevida e credibilidade às estruturas hierárquicas de informações. Para aqueles que acreditam no poder das fake news, resta apenas a tentativa de censurar a internet, mas essa estratégia se esgotará em razão do volume de dados e da complexidade do sistema de informações. Vale lembrar que, até mesmo no Irã, as pessoas continuaram protestando em novembro de 2019, ainda que o governo tenha cortado o acesso à internet.

Diante desse cenário “pós-dadaísta” e da reação ao novo paradigma informacional, acredito que o documentário Democracia em Vertigem receba a premiação no dia 9 de fevereiro. Caso o filme não seja premiado, tenho certeza de que a briga terá sido bastante acirrada nos bastidores. Não se enganem, Petra não é mera outsider em Los Angeles na atual conjuntura. A narrativa do documentário coaduna-se com a lógica do sistema hierárquico de informações, o que explica a razão pela qual Los Angeles pode comprar a ideia do documentário sem grandes problemas.

Gosto é algo particular. Confesso que apreciei as imagens de Brasília ao som da Bachiana nº 5, de Heitor Villa-Lobos, em um trecho inicial do documentário. Contudo, o que me incomodou bastante foi a tentativa de passar uma imagem de que o Brasil estava em plena harmonia institucional antes de as estruturas ruírem. Além da clara relação promíscua dos três poderes há décadas no país, devemos nos lembrar dos deliberados controles à liberdade de expressão. Não foi apenas a tentativa de expulsão do jornalista Larry Rohter em 2004, mas há claros episódios de cerceamento da liberdade de expressão, com destaque para as famosas “listas negras”.

Não duvido que seja catártico e libertador para muitas pessoas ver a história narrada como está no documentário. Sei que muitas pessoas se sentiram engolidas pelos acontecimentos políticos a partir de 2016, motivo pelo qual ainda adotam a narrativa do golpe, abraçando a “bolha da vertigem”. Como muitos achavam que a narrativa estava sob controle, a tendência para essas pessoas é continuar negando a realidade, radicalizando-se e atacando quaisquer pessoas que discordam do discurso.

Quem está no topo da sociedade pretende manter as coisas como estão com o intuito de manter seus privilégios, o que implica garantir o funcionamento das estruturas hierárquicas de informações. Obviamente, a nomenklatura burocrática negará sempre que pretende manter privilégios. Venderão sempre a ilusão de que entidades centralizadas resolverão problemas que, no fundo, são insolúveis. Quando falham deliberadamente na correção desses problemas, buscam mais recursos sob a alegação de que estão a favor dos mais necessitados.

Assim como outras pessoas, sinto um terrível vazio ao olhar livrarias e lojas de discos fechando as portas nos últimos anos, mas isso é inevitável. Mais triste ainda é ver a arte canônica restrita a nichos, enquanto a arte de grande visibilidade se torna um grande meme pelo mundo. A produção científica, porém, não está imune a essa grande transformação, de modo que a nova era obrigará cientistas e instituições a tomarem importantes ações disruptivas. Difícil dizer quanto tempo durará o acirrado conflito entre a rede hierárquica de informações e o novo paradigma, mas a contínua diluição da hierarquia informacional é inequívoca.

Numa sociedade fundada em direitos máximos e deveres mínimos, o que me preocupa é ver o Brasil afastado da cadeia global de valor, com baixa inovação tecnológica e com uma renda per capita cada vez menor. Tentar controlar o “tsunami tecnológico” no qual estamos submersos é inútil e nos fará desperdiçar ainda mais os recursos escassos. Se eu fosse obrigado a me engajar politicamente no meio artístico de hoje, eu diria: “mais Neil Peart, menos Roger Waters!”

Fabiano Borges é contabilista, mestre em música e analista em Ciência e Tecnologia.

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