Ouça este conteúdo
A China está atuando intensamente por influência na América Latina e a pandemia aumentou os riscos políticos. À medida que os países da região enfrentam desafios para suas economias em desenvolvimento e buscam soluções rápidas, eles passam a olhar novamente para o leste.
Durante a crise econômica de 2008, as compras chinesas de commodities minerais e agrícolas ajudaram a América Latina a mitigar os impactos negativos. Desde então sua participação em investimentos na região cresceu e chegou a US$ 12,8 bilhões em 2019, o que representa 16,5% a mais que no ano anterior. Em 2020 empresas chinesas anunciaram projetos que somavam mais de US$ 12 bilhões, mas a maioria ficou suspensa por causa da pandemia, que trouxe uma nova oportunidade para o país reconfigurar suas relações na região. Pela primeira vez em 16 anos, seus dois principais bancos de desenvolvimento, o Banco de Desenvolvimento da China e o Banco de Exportação e Importação da China, não concederam nenhum financiamento aos governos latino-americanos. Em vez disso, a China mudou radicalmente sua relação com a região, fortalecendo sua presença por meio de maior cooperação econômica e sanitária em setores estratégicos para os chineses: infraestrutura e matérias-primas.
Para a China, o investimento traz retornos econômicos, mas principalmente políticos. A China é um grande exportador mundial de bens manufaturados e de consumo, especialmente em itens como equipamentos de transmissão, discos digitais, peças de máquinas de escritório, circuitos integrados e telefones. Seu interesse na retomada econômica dos países é muito forte. Não apenas para dar pujança para seus principais compradores, mas também para usar da influência política da vacina para conquistar mercados hoje atendidos por seus concorrentes, principalmente os Estados Unidos, além do estreitamento das relações, votos na ONU, apoio para nomeações chinesas em instituições multinacionais, negociações para compromissos de mais longo prazo e parcerias em projetos de tecnologia e infraestrutura regionais.
A venda de commodities à China novamente dá fôlego para amenizar a crise econômica. E a China, como grande cliente, estreita suas relações e presença na região. Durante a pandemia a América Latina passa a depender novamente da China. A classe média chinesa impulsionou a demanda por soja do Brasil, carne bovina do Uruguai, petróleo da Colômbia e cobre do Chile. Em 2020 a China se tornou o principal parceiro comercial do Brasil, superando a marca histórica de US$ 100 bilhões. As exportações brasileiras para a China foram de US$ 67 bilhões naquele ano e as importações, de US$ 34 bilhões, gerando um superávit de US$ 33 bilhões para o Brasil. Isso representa cerca de 65% do saldo brasileiro com todos os países. A China tem sido o principal destino de pelo menos quatro dos principais produtos das exportações brasileiras: soja, petróleo, minério de ferro e celulose.
A vacinação tem sido outro fator de expansão da presença chinesa na América Latina. As vacinas chinesas ganharam espaço importante na região enquanto a pandemia se expande em ritmo acelerado. A cooperação sanitária estreitou as relações da China com países como México e Brasil, embora haja dificuldades no diálogo. O Brasil tem uma alta dependência dos insumos chineses para produção de vacinas contra a Covid-19. Hoje 80% dos brasileiros vacinados receberam vacina de insumos chineses. Ainda, o Brasil iniciou negociações com a China para a produção de uma nova vacina contra a Covid-19. Em reunião com ministros brasileiros, o embaixador chinês afirmou que o Brasil é prioridade, mas a China enfrenta dificuldades para entregar os produtos devido à alta demanda mundial, além da vacinação interna. A narrativa de confronto por parte do governo brasileiro tem sido apontada por analistas como dificultador do fornecimento de insumos.
As empresas chinesas têm demonstrado cada vez mais interesse em investir no Brasil em setores como agronegócio, tecnologia e infraestrutura. Em abril deste ano, o embaixador chinês no Brasil sinalizou que o agronegócio é um dos pilares da relação entre China e Brasil, e que a parceria inclui exportação de produtos e transferência de tecnologia. Ele também ressaltou que uma das maiores frentes de cooperação entre os países no agronegócio poderá ser a logística. Isso porque a grande distância entre os países demanda soluções nessa área que possam aumentar o valor agregado das exportações brasileiras. Outra parte do investimento chinês no Brasil está direcionada para o setor de energia: 43% dos recursos são destinados ao setor elétrico e 28%, para o setor de petróleo e gás. Mas a China investe pesado globalmente em energia renovável e hoje é líder mundial na fabricação de células fotovoltaicas e maior produtora de turbinas eólicas. E o Brasil, por suas características geográficas propícias e grande potencial de exploração, tende a atrair investimentos chineses.
O Belt and Road Initiative (BRI) é um programa de investimento chinês em desenvolvimento de infraestruturas com objetivo de estabelecer corredores comerciais mais eficazes em países de relevância estratégica. A China enviou, em 2018, convite aos países da América Latina para participarem do BRI. Dos principais mercados (Brasil, México, Argentina, Peru, Chile e Colômbia), apenas Peru e Chile aderiram formalmente. O Brasil continua recebendo investimentos chineses, mas sem acordos formais com o BRI.
A disputa pelo fornecimento de tecnologia 5G tem sido considerada a “nova Guerra Fria”. E a América Latina se tornou palco da disputa entre EUA e China, com tensões nas articulações e receios de retaliações comerciais, pois o país que liderar o fornecimento da infraestrutura terá forte influência sobre a economia regional. Em 2021, o Brasil realizará o leilão de frequências de 5G. A normativa não traz restrições específicas a fornecedores. No entanto, exige que as redes tenham sempre mais de um fornecedor. Na disputa, a China conta com a pressão que vem de uma crescente rede de parceiros comerciais, como é o caso do Brasil, que vende muitas commodities, e de seus credores nas linhas de financiamento que oferece para outros países. Os EUA pressionam por meio de suas redes comerciais e de influência. O Brasil depende muito comercialmente de ambos os países e estar no meio dessa disputa traz o temor de retaliações comerciais dos dois lados. A preocupação é mais evidente naqueles setores em que o Brasil depende do mercado desses países, como o agronegócio, que teme reduzir suas exportações por eventual retaliação. A avaliação quanto aos possíveis fornecedores de tecnologia 5G fica a cargo do governo de cada país, e as empresas brasileiras fornecedoras de serviços de telecomunicação deverão escolher de quem irão adquirir a infraestrutura.
A China tem ampliado sua participação no comércio da América Latina, passando a ocupar posições que antes eram cativas de players regionais. O Brasil historicamente é o principal parceiro comercial da Argentina. Mas, ao fim de 2019, pela primeira vez a China superou o Brasil nessa posição. Em setembro e outubro daquele ano, os argentinos chegaram a exportar US$ 74 milhões a mais para a China, que se manteve como seu principal parceiro até julho de 2020. Em agosto, o Brasil voltou a ocupar novamente a posição de principal parceiro comercial da Argentina, com exportações de US$ 777 milhões, contra US$ 604 milhões em vendas chinesas.
Hoje, o Brasil, a China e os Estados Unidos são tanto os principais destinos das exportações quanto os principais fornecedores de produtos para a Argentina. A pauta exportadora é composta principalmente de manufaturas do setor agropecuário, produtos primários, manufaturas industriais, combustíveis e energia. As importações são compostas principalmente de bens intermediários, bens de capital, peças e acessórios, bens de consumo, combustíveis e lubrificantes e veículos de passageiros. É nesses mercados que o Brasil compete com a China na América Latina.
A China tem se posicionado fortemente no comércio internacional, estreitando relações e conduzindo acordos para parcerias comerciais. Por outro lado, o Brasil tem se isolado na política internacional. E, especialmente na América Latina, tem perdido sua posição protagonista, com reflexos que alteram a pauta comercial e desbancam players antes em posições dominantes.
O contexto atual é de guerra comercial entre Estados Unidos e China, líderes mundiais: um capitalista, o outro comunista. Os americanos querendo manter sua hegemonia histórica e os chineses buscando relações, cooperação e alianças com países ainda em desenvolvimento, mas que demonstram boa ascensão econômica e geopolítica.
Os detentores da tecnologia da vacina ainda aumentam seu poder de barganha para levar às mesas de negociação questões comerciais que estavam paradas em impasses. O fato de as vacinas, em sua maioria (e é o caso das vacinas chinesas), necessitarem de mais de uma dose pode funcionar como fator de extensão de compromissos para longo prazo.
O interesse chinês na retomada econômica dos demais países é muito forte. Tanto para dar pujança para seus principais compradores como também para usar da influência política da vacina para conquistar mercados hoje atendidos por seus concorrentes, principalmente os Estados Unidos.
No cenário doméstico brasileiro, a força política da vacina não foi diferente. O presidente Jair Bolsonaro e o governador de São Paulo, João Doria, ambos demonstrando interesse na corrida presidencial de 2022, protagonizaram narrativas antagônicas dentro desse contexto. Bolsonaro havia depositado confiança na vacina britânica, enquanto Doria apostou na parceria com a China. Ambos (políticos e países) estão de olho nas oportunidades políticas que se abrem para uma aliança bem-sucedida. No âmbito da disputa presidencial do próximo ano, a reputação adquirida pela condução (boa ou ruim) da saúde pelos governantes será um dos fatores relevantes para popularidade e apoio político.
O relacionamento do governo brasileiro com a China foi estremecido por declarações ofensivas por parte de agentes da alta administração, gerando um clima de confronto. As razões e o tom das declarações ofensivas estão relacionados a uma espécie de confronto entre sistemas políticos. Apesar disso, a China tem adotado uma postura comercial pragmática, mantendo o comércio com o Brasil, em sua grande parte. Mas, como a questão da vacina é também geopolítica, decisões têm um viés de influência no longo prazo. O fato é que o Brasil ficou em posição vulnerável quando precisou receber insumos chineses para produção das vacinas.
Navegar pelas águas conturbadas do comércio e da política internacionais num momento em que os ventos mudam de direção exige das empresas e dos governos pragmatismo, estratégia e visão de longo prazo. A ascensão da China na América Latina traz aos países oportunidades e ameaças e, em determinadas situações, os bônus não virão sem ônus. Há um custo de oportunidade a pagar e que precisa ser avaliado buscando soluções de ganhos mútuos.
A pandemia passará. A crise econômica passará. A eleição presidencial passará. As relações do dragão milenar com os latino-americanos perdurarão. O formato dessas relações ainda está sendo lapidado de acordo com os interesses e capacidades de quem está no jogo.
Eduardo Galvão é professor de Relações Institucionais e de Políticas Públicas do Ibmec-DF.