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A confirmação da emergência da Ásia como polo dinâmico da economia global é um dos fenômenos marcantes deste início de século 21. Sua influência se faz sentir até mesmo em nossa América Latina, onde as economias asiáticas, em particular (mas não apenas) China e Japão, se sobrepõem a parceiros tradicionais com os quais nós latino-americanos possuímos maior afinidade cultural. As razões para esse sucesso são objeto de toda a sorte de conjecturas e teorias. Para além da mera satisfação da curiosidade humana, há aqueles que buscam compreendê-lo com o objetivo de replicá-lo em outras partes. No imaginário coletivo brasileiro, nos acostumamos a associar a Ásia emergente a jornadas infindáveis de trabalho e à copia sem cerimônia de tecnologia de terceiros. Embora essas duas variáveis façam parte da experiência recente de algumas economias asiáticas, elas também podem ser encontradas em outras regiões, pelo que seria errôneo concluir que seriam elas que permitiriam explicar o progresso vertiginoso da Ásia em período recente. Se há explicações para a singularidade asiática neste início de século, elas são mais profundas e devem ser buscadas para além dos clichês e, sobretudo, das estruturas políticas e econômicas emprestadas com sucesso do Ocidente.

A Ásia de que se fala aqui não é o Oriente Médio, nem a Rússia ou as ex-repúblicas soviéticas. Embora geograficamente parte do mesmo continente, essas regiões tem história e cultura marcadamente distintas do restante da Ásia, inclusive em termos de sua relação com o Ocidente. A Ásia à qual se associa o grande boom econômico do final do século 20 até hoje é aquela formada pelo subcontinente indiano, o Sudeste Asiático, China, Coreia do Sul e Japão.

Com frequência nos referimos a tal país asiático como uma “democracia” ou dizemos que a “classe média” de outro país asiático equivale a tantos milhões de pessoas; tudo como se estivéssemos tratando de conceitos perfeitamente aptos a descrever aquele continente. A verdade é que eles o são apenas se os aceitarmos como aproximações, como uma ponte entre o que significam para nós e o que representam para os asiáticos. Eles podem servir de ponto de partida para entender algo que é diferente, embora cumpra funções semelhantes. Em parte, somos condicionados a pensar assim pela dinâmica histórica que se estabeleceu com a colonização de vastas porções do continente asiático por europeus a partir do século 18. Lentamente, as estruturas dos estados europeus às quais estamos acostumados foram sendo depositadas sobre as novas colônias asiáticas. A própria Ásia contribuiu para esse processo. Fracassadas as primeiras tentativas de resistência ao poder militar europeu, calcadas ainda em modelos tradicionais de organização econômica, política e militar asiáticos, os países da região que lograram evitar a colonização (China, Japão e Tailândia) abraçaram os modelos ocidentais de organização do estado, educação e gestão da economia, para mencionar alguns.

Na Ásia, a subordinação do indivíduo ao interesse coletivo (família, etnia, religião e Estado) é a norma

A absorção do conhecimento ocidental pela Ásia não representou uma reprodução dos processos históricos que lhes deram origem. Um desses momentos ímpares na história ocidental que passou ao largo da experiência asiática foi o Renascimento. As ideias de que o homem é o centro de todas as coisas e da individualidade como um dos valores essenciais de nossas sociedades nunca deitou raízes na Ásia. Lá, a subordinação do indivíduo ao interesse coletivo (família, etnia, religião e Estado) é a norma.

Até o século 18 os contatos entre asiáticos e europeus tinham se dado em condições de relativo equilíbrio. Já no século 19, no entanto, qualquer ilusão sobre a capacidade da Ásia de resistir às potências europeias e aos EUA tinha se esfumaçado. Para os estados asiáticos, cujas sociedades nutriam um sentido de superioridade e autossuficiência frente aos estrangeiros, cujo reflexo eram as políticas de isolamento em China, Índia e Japão, o século 19 representou um choque. Para sobreviver, essas sociedades tiveram de promover mudanças que as descaracterizariam permanentemente. Confrontados com a superioridade tecnológica europeia, os asiáticos não se trancaram em universidades para divagar sobre as injustiças de que foram vítimas. Era preciso ser pragmático e obter resultados concretos. Em muitos casos isso significava abandonar ideias e práticas há muito estabelecidas e copiar os modelos ocidentais. A ênfase em resultados práticos com a qual os asiáticos se dedicam a uma empreitada por vezes pode nos parecer tosca, mas ela é terrivelmente eficiente.

Para a Ásia, o Ocidente era a fonte do conhecimento necessário para derrotar o Ocidente. Em nenhum outro país essa ambivalência será exposta de maneira tão clara como no Japão, o primeiro Estado asiático a emergir como uma potência em pé de igualdade com seus equivalentes ocidentais. Sucessivas vitórias militares, acompanhadas de rápida industrialização e formação de um apressado império colonial, no entanto, levaram o Japão a um processo descontrolado de expansão militar cujo resultado é conhecido do leitor. O Japão queimou etapas e subestimou a capacidade econômica e industrial do Ocidente. A Ásia tinha encontrado um caminho, mas ainda havia muito o que aprender.

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Nos anos 60 e 70 do século passado diversos países asiáticos seguiam envolvidos em conflitos de natureza diversa, muitos dos quais herança do passado colonial. Talvez seja mais fácil dizer que ao longo da década de 80 do século passado o consenso sobre o imperativo do progresso econômico finalmente contaminou a Ásia. Esse crescimento deu-se mediante a imposição de sacrifícios impensáveis para uma sociedade culturalmente ancorada no Ocidente como a brasileira. Um exemplo? Os países asiáticos, até mesmo o próspero Japão, exibem gastos com previdência social extremamente baixos em comparação com seus pares ocidentais de nível de desenvolvimento econômico similar.

Até que ponto essa Ásia que prospera tão longe de nós pode servir de inspiração para o Brasil? Tanto nós quantos os asiáticos ingressamos na modernidade pelas mãos de europeus, mas a Ásia o fez quando já consolidadas matrizes culturais próprias. Nós brasileiros temos um arraigado sentido de individualidade. Somos capazes de opinar sobre os desafios coletivos, talvez até de forma mais articulada que nossos confrades asiáticos, mas no momento em que as possíveis soluções projetam seu impacto no plano individual passamos a sabotá-las. Estamos dispostos a aceitar sacrifícios, desde que eles recaiam sobre o nosso vizinho. Um asiático também pode sentir-se assim, mas ele está menos legitimado para atuar dessa forma perante a sociedade que integra. A pressão para que ele se ajuste à necessidade coletiva é enorme. No Brasil, nossa falta de pragmatismo se reflete no apego às discussões políticas infindáveis. Somos pródigos em ter ideias que nunca são executadas e em leis que não são cumpridas. As boas (ou más) intenções formuladas no plano coletivo falham miseravelmente ao esbarrar com miríades de esferas individuais, onde impera o eu sobre o nós. Talvez um olhar humilde para o contrato social asiático nos faça pensar menos nos processos e mais em seus resultados; e no fato de que todo resultado demanda sacrifícios, inclusive de nós mesmos. O desenvolvimento é, também, uma questão de valores.

Daniel Falcon Lins é diplomata, atualmente ministro-conselheiro na Embaixada do Brasil em Kuala Lumpur, formado em Direito pela UFPR.
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