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Opinião do dia 1

A bacia de Pilatos

O presidente Lula tem um estilo muito peculiar de governar. Parece que ele não se sente participante dos problemas concretos da administração, cabendo-lhe apenas verbalizar sua irritação com a incompetência de seus auxiliares e sua simpatia pelos que sofrem com a ineficiência de seu próprio governo. Seu instrumento preferencial de ação é a saliva, a lábia, a sucessão de frases e afirmações ora autoritárias do tipo "quem nomeia e demite ministro sou eu" quando todo mundo sabe que não é assim; ou grandiloqüentes, quando determina aos ministros que lhe informem o dia e a hora em que o apagão aéreo vai acabar, coisa que ele sabe perfeitamente que não é possível; ou ainda, carregadas de sinceridade suicida, quando condena a qualidade da educação brasileira. Mas como governar vai mais além do que manifestar irritações e simpatias a torto e a direito, os problemas vão se acumulando. E quando isso acontece, o presidente recorre ao seu arsenal inesgotável de metáforas futebolísticas e muda de assunto. O pior é que a verborragia presidencial acaba por construir sua própria lógica e os fatos passam a ser julgados por intermédio dela.

Veja-se o exemplo da lambança institucional que o presidente provocou na já imensa lambança do apagão aéreo. O comandante da Aeronáutica, confrontado por sargentos amotinados nos Cindacta determinou a prisão de 18 deles. O presidente da República reverteu a decisão e mandou o governo federal negociar com os grevistas. (Antes de ir em frente, um parêntese: o presidente não tem um Ministro para Assuntos Institucionais, aquilo que antigamente se chamava de Chefe da Casa Militar, para alertá-lo do erro monumental que estava cometendo ao aceitar o rompimento de um dos pilares da instituição militar que é a hierarquia?). O ministro Paulo Bernardo, que não é criança e é uma pessoa séria, recebeu ordens para conduzir a negociação e o fez, mesmo conhecendo o terreno minado em que estava pisando; ele próprio declarou às tevês que a presença de um negociador civil se devia ao fato de que os chefes militares não poderiam negociar com subordinados amotinados. Na ânsia de cumprir a ordem do presidente, se deu mal. Quando o presidente Lula sentiu o tamanho do vespeiro em que havia mexido voltou atrás, desautorizou o ministro, declarou em alto e bom som seu respeito pela hierarquia e sua pétrea disposição de fazê-la respeitar e incumbiu o comandante da Aeronáutica de coordenar daqui para a frente o assunto da crise dos controladores. E declarou que agora espera que a Aeronáutica resolva o problema...

Na realidade, o presidente agiu com fria esperteza ao colocar o problema no colo do comandante da Força Aérea, mesmo sabendo (ou no mínimo devendo saber) que a solução não compete somente a ele, muito pelo contrário. Há vários anos, especialistas civis e militares vêm alertando o governo para os problemas gravíssimos, humanos e materiais, que vêm se acumulando no controle aéreo por falta de investimento público sem despertar qualquer simpatia ou interesse. Resolver o problema exige investimentos públicos imediatos e volumosos em equipamento e gente, os quais têm sido invariavelmente postergados pela equipe econômica, que deixou a infra-estrutura do país desmilingüir-se para economizar recursos, engordar o superavit primário e pagar juros recordes ao mercado financeiro.

Em outras palavras: o anacronismo e as deficiências do controle aéreo no Brasil vêm se agravando ao longo de muitos anos desde muito antes do governo Lula, mas o governo atual, desconhecendo todos os alertas dos especialistas, não fez nada para se antecipar ao caos aéreo que um dia fatalmente aconteceria. O acidente da Gol só veio mostrar que imprudente e irresponsavelmente, os investimentos em segurança aérea tinham sido cancelados, reduzidos ou postergados, enquanto a Infraero gastava bilhões para embelezar os aeroportos utilizando métodos de compra e contratação que enrubesceram o Tribunal de Contas da União. Depois que o caos estava instalado, o governo passou seis meses fingindo que estava resolvendo o problema e, se reunião resolvesse alguma coisa, teria mesmo solucionado, pois nunca se viu tanta gente importante se reunir tanto. O presidente Lula resolveu mostrar autoridade e fixou dia e hora para seus auxiliares fazerem a crise acabar, como se isso estivesse no limite de sua vontade. Obviamente não estava e nada se resolveu Quando a coisa desandou, ainda cometeu um erro fatal, desautorizando o comandante da Aeronáutica, mas rapidamente voltou atrás e agora se isenta de qualquer responsabilidade. Para o presidente, já que transferiu o problema para alguém, este deve ser considerado resolvido. É hora de passar a outro assunto.

E ele ainda declara publicamente que já que o problema agora "pertence" à Aeronáutica, ele espera que ela o resolva. Brilhante. Tragam a bacia para Pilatos lavar as mãos.

BELMIRO VALVERDE JOBIM CASTOR é professor do Mestrado em Organizações e Desenvolvimento da FAE Business School.

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