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Meus pais não permitiram que eu e minha irmã esquecêssemos o espanhol, fingindo que não entendiam quando falávamos inglês. Aliás, era a única língua que podíamos usar em nosso apartamento de um quarto em Miami, no fim dos anos 80. Nós duas fechamos as notas em inglês em tempo recorde no jardim de infância e no primeiro ano, e queríamos muito brincar, conversar e viver no idioma, como se fosse um brinquedo novo e reluzente.

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"No te entiendo", minha mãe dizia, balançando a cabeça e encolhendo os ombros em confusão fingida toda vez que engatávamos a conversa em inglês. Minha irmã e eu suspirávamos, exasperadas por termos de repetir tudo em espanhol, e ainda sermos interrompidas para a correção da gramática e do vocabulário praticamente depois de cada palavra. "Um dia vocês vão me agradecer", era o que minha mãe dizia.

Pois esse dia chegou, 30 anos depois, e se mostra nos lugares mais triviais como o Goodwill, o estacionamento do Walmart ou o Costco Tire Center.

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Eu achava que tinha me tornado escritora por ser bilíngue, mas, cada vez mais, vejo que vai muito além disso

Aprecio o fato de falar espanhol porque isso me permite ajudar outras pessoas. Como a jovem mãe que queria saber se poderia deixar uma caixa de fraldas desajeitada perto da entrada do Goodwill enquanto fazia as compras. A caixa balançou a cabeça com ar arrogante e disse que não estava entendendo. Não era difícil interpretar os gestos da moça – e, além do mais, era óbvia sua dificuldade de empurrar o carrinho e segurar a caixa na mão. E, mesmo depois que traduzi o que a cliente estava pedindo, a irritação da mulher era palpável.

O ar de reprovação já conheço bem: "Como essa aí ousa não falar inglês? E como ousa essa outra falar inglês e espanhol?" A situação foi breve, mas mostrou como seria fácil para a caixa simplesmente ignorar uma mãe latina em um momento de dificuldade se não houvesse ali alguém para traduzir. "Não entendo", repetia ela, embora os gestos da moça transcendessem a língua. "Decidi que não entendo", era o que realmente queria dizer.

Quem cresceu falando duas línguas entende a complexidade de manter e usar ambas. A deputada Alexandria Ocasio-Cortez tuitou há pouco tempo: "O espanhol foi minha primeira língua, mas, como muitos filhos de latinos nascidos nos EUA, tenho de treinar o tempo inteiro para melhorá-lo. Não é perfeito."

No espanhol falado pelos filhos de imigrantes, ouvem-se os ecos dos risos dos primos ao ouvir nosso sotaque quando os visitamos em sua terra natal. Basta voltar uma geração para ouvir histórias como a dos meus sogros, que apanhavam dos professores, na Flórida, por falarem na escola a língua que usavam em casa. Voltando duas, você vai ficar sabendo do terror racial, sancionado pelas autoridades, infligido aos descendentes de mexicanos que moravam no Texas no fim do século 19 e no início do século 20.

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Nas redes sociais, há vídeos de norte-americanos assediando hispanófonos em supermercados e restaurantes. Essa linguagem de xenofobia e supremacia branca é falada fluentemente por nosso próprio presidente, e explica por que a relação de gerações e gerações de latino-americanos com o espanhol é marcada pela dor.

Daqueles cujos pais tentaram protegê-los da discriminação, não lhes ensinando o idioma, espera-se fluência em uma língua que nunca tiveram nem a chance de esquecer; os que aprenderam e ainda falam, apesar da pressão para assimilar o inglês, sabem que o espanhol, mesmo imperfeito, é um privilégio, ainda que por causa dele sejam constrangidos dentro e fora da comunidade; já os que falam só espanhol quase sempre são solenemente ignorados e, pior até, viram alvo de mulheres empurrando carrinho de compra, dos oficiais do ICE, de atiradores que publicam manifestos anti-imigração. O terror deles nos transforma em vítimas.

Semanas antes das eleições de 2016, uma mulher entrou correndo na barraca onde eu estava ajudando a inscrever os eleitores, montada no estacionamento do Walmart de Manor, no Texas – em lágrimas, pois seu carro tinha sido roubado. Em uma cidadezinha onde quase 50% dos habitantes são latinos, nenhum dos policiais no local a entendia. Enquanto ela fazia o boletim de ocorrência, com minha ajuda na interpretação, percebi que mal faziam contato visual com ela. Como eu era a única a quem entendiam, viam só a mim. Ela me disse que seus documentos de imigração estavam no veículo.

Como se traduz o medo para aqueles em quem não se confia?

No Costco Tire Center do Texas, esta semana, uma mulher perguntou ao homem que tinha acabado de me atender se ele falava espanhol, ao que ele respondeu um "não" curto e grosso. Eu me ofereci para ajudar. Quando ela abriu a carteira para pegar o cartão de fidelidade, uma imagem conhecida chamou minha atenção: o green card. Reconheci-o por causa da faixa magnética na parte de trás, que tem um brilho preto azulado.

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Eu me vi traduzindo suas palavras literalmente, me esquecendo até de trocar a primeira pessoa pela terceira. "O carro está no nome da minha filha", expliquei. No rosto dela, vi minhas amigas, minha mãe, minha avó e eu, cada uma com um nível diferente de espanhol e inglês, todas desejosas de aceitação e compreensão.

Eu achava que tinha me tornado escritora por ser bilíngue, mas, cada vez mais, vejo que vai muito além disso: é o ato constante da interpretação. É o bate-bola, o toma lá, dá cá. A descoberta de que a língua, e as histórias que carrega em si, não são uma linha reta. Quem serve de tradutor no dia a dia sabe que é um privilégio paradoxal, pois você descobre verdades nas entrelinhas, mas nunca encontra as palavras certas para expressá-las. Ouve o som de outra pessoa sendo ouvida em sua própria voz, sendo invisível em silêncio. Você fala de coisas simples, coisas difíceis e coisas alegres, todas diluídas pela separação da fonte. Não me parece justo que as palavras de uma pessoa não bastem.

Natalia Sylvester é autora dos romances "Everyone Knows You Go Home" e o ainda inédito "Running".

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