Mágoa é veneno que eu tomo sozinho e espero que o efeito recaia sobre quem me magoou. É uma espécie de alforje, pois somente a mim cabe carregar. Portanto, sou o único que perco com essa carga tóxica e peçonhenta que infelicita e desencadeia doenças. Normalmente, meu detrator não está nem aí para o meu sentimento, tampouco os outros. Bem ensina um velho cacique indígena: “os maiores inimigos do homem estão dentro do próprio homem: são os ressentimentos”.
Numa escala próxima estão os melindres e, ao atingir a vida adulta, toda pessoa deveria adotar como lema “perdi o direito de ser melindroso, sob pena de me tornar um velho ranheta”. O filósofo norte-americano Ralph Waldo Emerson bem o disse, em uma tradução livre: ponha de lado os melindres ao agir, pois a vida é uma experiência. Não posso me quedar a um vitimismo que só me afasta das pessoas. Alguém estaria interessado na minha autoestima? Tirante alguns poucos familiares ou amigos, ninguém.
Uma autoestima elevada cabe a mim, podendo ser desenvolvida de maneira duradoura e genuína pela prática do bem, pelo prazer de ser útil, pela alegria do dever cumprido e pelo cultivo da nobre arte de perdoar. São atitudes que fazem com que eu compartilhe uma energia positiva muito forte, mantendo-me entusiasta e não me apequenando diante das vicissitudes da vida nem dos sentimentos vis. A propósito, entusiasmo é uma das palavras mais belas do nosso léxico, e tem etimologia no grego: en-theo, em que en significa “dentro” e theo significa “deus”. Ou seja, para os gregos politeístas, quem tem entusiasmo tem um deus dentro de si, e cabe a mim carregar essa chama esplendorosa do entusiasmo.
E intercalando-se no deletério papel de causa e de efeito das mágoas e dos melindres, várias pesquisas apontam a maledicência como a origem primeira de hostilidades e desgostos. A sabedoria popular ensina que “a língua é o chicote do corpo”, ou, no Talmude (livro sagrado dos judeus, que reverbera há séculos), com a frase a “palavra dita é como abelha, pois tem mel e tem ferrão”.
Ainda mais incisiva é a nossa estimada jornalista Marleth Silva, mestre pela Universidade de Westminster, que assim se manifestou em um artigo nos idos de 2013: “Tenho cá para mim que 90% do que falamos e do que ouvimos é dispensável. Se não dito, não faria falta. Talvez até ficássemos melhor. Não me refiro só às maldades e fofocas que têm poder de incomodar. A maioria de nós não é assim tão fofoqueiro, nem tão maldoso. Nosso mal é falar coisas desnecessárias; é dizer inutilidades. Acredito até que a fofoca maldosa nasce mais da vontade de falar qualquer coisa que do desejo de ferir. A maioria dos fofoqueiros são inconsequentes, bobos. Só isso, bobos”.
Em tempos de profusão das mídias sociais, que deram azo e voz a uma legião de ativistas que tudo sabem e tudo julgam, é pertinente e consentânea uma narrativa alegórica da sabedoria oriental. Antes de levar adiante uma maledicência com potencial destrutivo, devo passar pelo crivo das duas peneiras: 1. a peneira da verdade: se eu apenas ouvi falar, qual a certeza de ser confiável? E, não sendo verdade, há dois tipos de danos: a mim mesmo, que passo por leviano, fofoqueiro e intrigueiro; e ao outro, pois compromete a credibilidade de todo um conjunto de boas obras e afeta a reputação tão duramente conquistada por anos de trabalho; 2. a peneira da bondade: o que eu estou contando, gostaria que os outros dissessem o mesmo a meu respeito? Quem vai se beneficiar dessa informação? Todo ser humano comete erros, e ter complacência é uma atitude nobre e humana.
A mágoa indica uma alma ferida, e uma boa analogia é relembrar como nasce uma pérola. A indesejada impureza se adentra à concha, e diante dessa agressão a ostra tem a natureza, tem a sabedoria de converter o infortúnio em uma encantadora pérola. É uma transformação tão ou mais difícil que sublimar a mágoa com o perdão, que produz leveza interior. As maiores destruidoras de afetos não são as divergências, mesmo quando descambam para momentos de raiva, mas as mágoas. Parafraseando o apóstolo São Paulo: que não se ponha o Sol sobre o vosso ressentimento.
Jacir J. Venturi, escritor, engenheiro e matemático, é vice-presidente do Conselho Estadual de Educação do Paraná e foi professor e diretor de escolas por 50 anos.
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