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Pedestres usando máscaras caminham em uma rua comercial em Pequim em 14 de janeiro de 2021. Imagem ilustrativa.
Pedestres usando máscaras caminham em uma rua comercial em Pequim em 14 de janeiro de 2021. Imagem ilustrativa.| Foto: WANG Zhao / AFP

Era tradição daquela época: a cada ano novo, a cartomante aparecia. No programa de maior audiência, anunciando as previsões. O impulso poderoso da tevê legou fama repentina à cartomante.

A pergunta inicial, para atiçar a curiosidade, girava em torno do seguinte: qual será o fato marcante para o ano que se inicia? Na principal atração da noite, a cartomante finalmente proclamava a profecia aguardada, em locução triste e sombria: morte de uma pessoa famosa.

Meu sangue fervia: que falta faz ler A Cartomante, de Machado de Assis, para desmascarar os falsos dotes desta espécie. Parecendo ler meu pensamento, a vidente tentava escapar das amarras do óbvio, restringindo as possibilidades: é celebridade do meio artístico.

A adivinhação mística perdeu espaço na tevê, sobretudo a partir de 2020, com a pandemia causada pela Covid-19. A tendência, desde então, tem sido edificar altares para a ciência, franquear microfone somente a quem exibir as credenciais de especialista. Mas há um porém: produzir ciência exige esforço, pesquisa qualificada não se curva ao imediatismo inquietante dos apressados.

A urgência por resultado assanha a tentação de se buscar atalho nas crendices do passado, abrindo brecha para os aventureiros tomarem assento no pedestal edificado aos cientistas. Esta realidade perturbadora de mau uso da ciência tem sido abordada por vários autores; para ficar em dois exemplos, cita-se Robert Greene e António Couto.

O escritor norte americano Robert Greene afirma que um pouco de ciência é pior do que ciência nenhuma. Dentre os fatos que amparam seu argumento, consta a saga emblemática da busca pela Pedra Filosofal, por meio da qual seria possível transformar qualquer poeira em ouro puro. Surpreendentemente, lá pelo fim do Renascimento europeu, quem caía no velho golpe eram os vultos influentes da sociedade, cuja presunção de supremacia facilitava a ação dos trapaceiros, porque, com a ciência em voga, a nobreza reconhecia prontamente os termos científicos recitados como engodo pelos vigaristas de ocasião.

O escritor moçambicano António Couto, mais conhecido por Mia Couto, defende a importância de cada povo valorizar a própria cultura, em vez de importar apressadamente teorias mal compreendidas, supostamente de origem superior. Ouvi recentemente por meio de conferência remota, diretamente da boca do escritor, o relato de uma tribo africana que, antes de acatar as instruções dos sanitaristas para se proteger da Covid-19, pediu uma audiência com o vírus. É isso mesmo que você leu: os líderes da tribo dispuseram-se a dialogar com o ser invisível e perigoso que chegava matando gente. Queriam compreender o modo de agir do ente misterioso, para só então decidir se as normas sugeridas pelas autoridades sanitárias para evitar o contágio eram realmente as mais adequadas.

A fim de evitar mal-entendido, vamos reforçar aquilo que deveria ser evidente. A ciência é essencial; ruim é o mau uso dela. Inclusive, este que escreve se tornou um defensor ainda mais ferrenho do método científico depois de tatear a fronteira do conhecimento humano durante o doutorado, e finalmente encarar o rigor da banca no dia da defesa pública da tese. Aquela tarde foi tensa, os abnegados guardiões da ciência não deram mole. A depender deles, nenhum falastrão com pesquisa rasa ultrapassa o umbral do desconhecido. Portanto, pode-se dormir tranquilo, a ciência está em boas mãos. Quanto a mim, graças aos méritos do trabalho, voltei para casa com o título de doutor.

Voltemos à figura glorificada do especialista, eleito pela tevê o porta-voz da ciência para narrar os rumos da já citada pandemia. Precipitado, apregoou conclusões, enquanto os cientistas de verdade estavam ocupados coletando dados, formulando perguntas, levantando hipóteses. Ou, nas palavras de Mia Couto, quem de fato fazia ciência naquele momento tentava apenas compreender o vírus.

Seduzido pelas câmeras, o especialista sequioso por plateia ignorou as condicionantes de estudos preliminares e as limitações de modelos computacionais até então incipientes. Avalizou um erro feio atrás do outro, entre eles o prazo para a doença devolver a normalidade ao povo brasileiro: duas semanas, mais tardar três, a contar de meados de março – de 2020.

Pois bem, depois do estrago feito, só resta aprender com as lições que a história deixa. Para rejeitar as platitudes surradas das cartomantes, basta um pouco de cautela. Por outro lado, para não cair na lábia de quem tempera palpite com pitadas de ciência, é necessário uma prudência maior, um senso crítico bem mais articulado.

Florentino Fagundes é escritor e professor de Matemática da PUCPR.

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