A denúncia do delator e os apontamentos tornados públicos do telefonema realizado em 25 de julho entre Trump e o ucraniano Volodymyr Zelensky levantaram sérias dúvidas em relação à administração das questões externas, a manutenção oficial de registros e o uso dos sistemas de segurança nacional para proteger informações confidenciais do presidente e de sua administração, e com toda a razão.
Como ex-diretor do Secretariado Executivo do Conselho Nacional de Segurança, ajudei a supervisionar a produção e a manutenção de registros dos memorandos presidenciais de conversas, tanto telefônicas quanto pessoais (os chamados "memcons"). Para compreender qualquer possível abuso cometido pelo atual governo nessa comunicação (e talvez em outras), é preciso entender o processo por meio do qual as chamadas presidenciais a líderes estrangeiros são catalogadas e manipuladas dentro da Casa Branca.
Baseado na minha experiência, acredito que a tal transcrição divulgada oficialmente do telefonema não reflete integralmente o diálogo presidencial com Zelensky. Além disso, a denúncia levanta questões extremamente preocupantes em relação à maneira como os advogados e funcionários do governo lidaram com o memorando. O que a acusação descreve é, a meu ver, altamente incomum e grande motivo de preocupação.
O processo de produção de memcons deve gerar registros tão fiéis, precisos e detalhados quanto possível da conversa presidencial com outro líder estrangeiro (embora não precisem ser transcrições literais). Ele funciona da seguinte forma, ou pelo menos funcionava: a sala de gerenciamento de crises (Situation Room), que faz as ligações e anotações desse tipo de telefonema, gera um primeiro esboço da conversa, tão literal quanto possível, que é enviado aos membros do Conselho Nacional de Segurança que participaram da chamada para integrar suas notas ao primeiro resumo.
O memcon divulgado ao público na semana passada talvez não seja o único registro, ou o mais completo, que a Casa Branca fez
Estes, a seguir, criam um "pacote" formal, combinando as notas do pessoal da sala de gerenciamento de crises com as suas próprias, que se tornará o memcon final e oficial aprovado pelo assessor de segurança nacional, depois de revisado pelo Secretariado Executivo e formalmente aprovado pelo assessor nacional de segurança ou seu vice. É essa a versão que vai para os registros do Conselho de Segurança para a posteridade.
O memcon pode ser editado a qualquer momento do processo de produção e revisão, até ser aprovado e enviado para o arquivamento final. Durante o governo Obama, as edições dos pacotes de memcons eram mínimas; de fato, o processo não era usado para a retirada de detalhes pouco lisonjeiros ou incorreções, mas relatos problemáticos como a denúncia do delator sugerem que a prática talvez tenha mudado no atual governo. O memcon divulgado ao público na semana passada talvez não seja o único registro, ou o mais completo, que a Casa Branca fez da conversa presidencial que gerou a polêmica atual.
Vale notar que, para preencher os requisitos do Ato de Registros Presidenciais, os sistemas de gerenciamento de documentos do Conselho de Segurança para processamento dos "pacotes" muito provavelmente teriam capturado qualquer modificação eletrônica feita no memcon.
Por que nos damos a todo esse trabalho? Por dois motivos principais: primeiro, para lembrar ao pessoal da segurança nacional o que foi discutido e com o que os presidentes se comprometeram (ou não). Isso permite a responsabilização de qualquer governo estrangeiro pelo engajamento privado de seu líder e impede que outros governos aleguem um comprometimento que não existiu por parte do nosso presidente. Segundo, um memcon fiel é um registro histórico inestimável para mostrar às futuras gerações o retrato das relações internacionais atuais.
A alegação do delator de que o primeiro esboço do memcon foi "bloqueado" a pedido dos "advogados da Casa Branca", usando um sistema eletrônico separado, dedicado a processar os materiais de segurança nacional mais delicados, também me parece incrivelmente incomum. Embora os memcons presidenciais estejam entre os documentos mais sigilosos e bem protegidos da Casa Branca (seu conteúdo é um alvo dos mais desejados pela espionagem internacional), no governo Obama era prática padrão, mesmo para os mais secretos, que fossem produzidos pelo sistema eletrônico básico do Conselho de Segurança, que lida com material considerado até "altamente secreto".
VEJA TAMBÉM:
- O memorando de Zelensky é o que basta para impedir Trump (artigo de Noah Bookbinder, publicado em 26 de setembro de 2019)
- Os democratas não aprenderam a lição com Trump (artigo de Rodrigo Constantino, publicado em 31 de julho de 2019)
- A economia é a chave para a reeleição de Trump? (artigo de Carlo Barbieri, publicado em 15 de julho de 2019)
O sistema é capaz também de limitar o acesso a um memcon em particular somente àqueles que têm uma necessidade específica de vê-lo e editá-lo. O memcon Trump-Zelensky foi classificado originalmente como "Secret//Orcon/Noforn", ou seja, seguiria o processo rotineiro; não havia motivo aparente, pelo menos de acordo com a classificação, para colocá-lo no sistema de acesso restrito dos ultrassigilosos. Assumindo-se que o memcon se originou no sistema de gerenciamento de documentos do Conselho de Segurança, seria necessário que alguém do mais alto escalão desse a ordem de transferência.
O memcon que foi divulgado e a suposta maneira como a Casa Branca lidou com o documento levantam questões importantes. Primeira: é preciso questionar se algo substancial e conclusivo para a polêmica atual foi deliberadamente omitido ou editado (ou acrescentado) aos registros de 25 de julho antes da divulgação oficial. Fico imaginando se o pessoal do Conselho Nacional de Segurança foi instado não só a "bloquear" o memcon, mas também a destruir as próprias anotações do telefonema, o que seria uma violação do Ato de Registros Presidenciais.
Assumindo-se que a denúncia do delator tenha razão de ser, é o caso de questionar por que os advogados da Casa Branca (ou qualquer integrante do alto escalão) mandariam transferir o memcon do sistema eletrônico sigiloso básico para o ultrassecreto, a que apenas alguns poucos têm acesso, se o conteúdo supostamente não exigisse esse procedimento. Acho muito curioso, uma vez que as vias padrão são perfeitamente capazes de lidar com o nível de sigilo do memcon de 25 de julho, limitando estritamente o acesso a ele, inclusive para evitar vazamentos.
Essas questões deveriam causar apreensão e desconforto no país inteiro, mas principalmente exigem respostas do governo e dos investigadores independentes.
Alex Pascal foi o diretor do Secretariado Executivo do Conselho Nacional de Segurança do governo Obama.
The New York Times Licensing Group – Todos os direitos reservados. É proibido todo tipo de reprodução sem autorização por escrito do The New York Times.