“Uma cidade é sempre uma concentração de oportunidades, não uma aglomeração de casas”, explica o arquiteto chileno Alejandro Aravena, reconhecido por projetos de habitação social na América Latina. O curador da próxima Bienal de Veneza faz uma crítica devastadora aos fundamentos do Minha Casa, Minha Vida: “Essa formulação ideológica de que ‘sua casa é sua vida’ não é verdadeira. Sua vida é a quantidade de oportunidades de trabalho, educação, transporte, lazer”. A vida é a cidade – ou melhor, o direito à cidade.

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Desde o advento concomitante da indústria e da metrópole, a demanda crescente pelo espaço urbano enfrenta o dilema de duas lógicas ligadas à produção de bens e serviços: a economia de aglomeração e a economia de escala. A primeira, expressão do aumento de produtividade propiciada pela proximidade de atividades complementares, se beneficia da ocupação intensiva da terra. A segunda, expressão da redução de custos pelo aumento da produção, requer grandes áreas e conduz à ocupação extensiva da terra.

Diante dos problemas sociais gerados pelo avanço das cidades, governos e mercados, cada um a seu modo, buscaram fórmulas voltadas para a simplificação de uma realidade cada vez mais complexa. A Carta de Atenas, manifesto dos urbanistas dos anos 30, imaginou ser possível estabelecer uma fórmula de planejamento capaz de abarcar a totalidade das necessidades humanas e prescreveu a separação funcional das áreas de moradia, trabalho e lazer. Suas diretrizes influenciaram o desenvolvimento de diversas cidades europeias e a formação de cidades como Chandigardh e Brasília, que se converteram em demonstração empírica do fracasso dos preceitos reducionistas de Atenas.

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Paris e Londres almejam reformar a cidade. No Brasil, contentamo-nos com um negócio político e imobiliário

As forças de mercado agravaram o processo de simplificação, segmentando os espaços urbanos pela promoção de empreendimentos voltados para este ou aquele estamento econômico-social. A fragmentação ganhou contornos físicos com o fechamento de diversos empreendimentos por muros e grades que, erguendo enclaves privativos, reforçaram a lógica de segregação, geraram ruas mortas e desvalorizaram os espaços públicos. Na mesma direção, mas com outros meios, governos exacerbaram as clivagens territoriais urbanas com projetos de habitação social nas periferias. Na sua mortífera monotonia estética, as New Towns londrinas e as Habitações de Locação Moderada, de Paris, cidades-dormitório distantes dos locais de trabalho, ficaram conhecidas por se tornarem conchas de exclusão social e de ressentimento.

Sedimentou-se, finalmente, um consenso avesso às fórmulas tradicionais de intervenção urbana, marcadas por assimetrias na oferta de espaços de trabalho, lazer e habitação, e entre áreas de uso público e privado. O acúmulo de fracassos gerou a consciência de que as cidades globais demandam soluções complexas, para as quais é imprescindível o recrutamento de competências em diversos campos do conhecimento, e também o engajamento das forças sociais interessadas. O problema central na equação é que tais soluções demandam recursos que não estão disponíveis no âmbito público e tampouco no campo privado, cujos investimentos priorizam a escala do imobiliário, em que o binômio risco-retorno é mais mensurável.

Diante da dupla falha, de mercado e de governo, cidades como Paris e Londres buscam respostas mediante chamamentos públicos internacionais nos quais “agentes da cidade” do mundo inteiro (urbanistas, investidores, ativistas da inovação urbana, incorporadores etc.) são instados a propor ideias, junto com modelos econômico-financeiros e estruturas jurídicas de implementação. Na capital francesa, o edital do concurso Réinventer Paris colocou à disposição 23 propriedades públicas, em região central, para a viabilização de projetos urbanos inovadores, envolvendo grupos econômicos, ONGs, associações de bairro e urbanistas de estatura mundial como Norman Foster, Shigueru Ban, Diller Scofidio, Aravena e Rem Koolhaas.

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Em Londres, dobrada a década de especulação imobiliária sem freios, lideranças do setor público e privado se organizaram junto à New London Architecture para lançar um concurso de ideias para a superação da crise habitacional que coloca em risco o dinamismo da cidade e a coesão social de sua população. O termo de referência do edital é um ensaio que traz um quadro social e habitacional da metrópole britânica. Trata-se de um grito de alerta que identifica a tensão dilacerante entre os polos da inovação tecnológica, pujança econômica e dinamismo social, de um lado; e da privação, pobreza e exclusão social, do outro.

Paris e Londres almejam reformar a cidade. No Brasil, pelo contrário, não precisamos das ideias do mundo, pois contentamo-nos com um negócio político e imobiliário. “Não faz sentido comprar terra onde não existem oportunidades e consumir todo o espaço disponível com habitações. Isso não é uma cidade”, alerta Aravena.

O Minha Casa, Minha Vida replica as fórmulas do passado, circunscrevendo os pobres às periferias, em empreendimentos carentes de infraestrutura com vocação para se tornarem espaços de fermentação de violência e ódio social. Mas, obviamente, atende aos interesses dos políticos, que constituem clientelas eleitorais; e das construtoras, que se apossam de contratos públicos sem risco. Na teia do programa ainda cabe o inevitável movimento social de moradia, que opera como intermediário entre o poder público e a população carente, definindo o lugar de cada um na fila da casa segundo o critério da militância.

Nos Jogos Olímpicos do Rio, os velejadores navegarão entre ilhotas de dejetos flutuantes. As imagens, que já correm o mundo, sintetizam as relações que estabelecemos com as cidades e os espaços públicos. Não nos distinguimos de Paris ou Londres por uma crise urbana ou pelos recursos financeiros disponíveis, mas pela persistência na mentira. A casa não é a vida.

Demétrio Magnoli é sociólogo. Philip Yang é fundador do Instituto de Urbanismo e Estudos para a Metrópole (Urbem).