Passado o primeiro impacto da cassação do deputado federal Deltan Dallagnol, retomemos fôlego para uma reflexão sobre possíveis fatores influenciadores do julgado unânime do TSE, e para uma leitura das entrelinhas da decisão, contextualizando-a no âmbito do atual cenário político.
Como já admitido por vozes conceituadas do direito e da mídia, o entendimento dos togados nem de longe foi pautado por parâmetros técnicos. Isso porque inventou um caso de inelegibilidade não previsto em lei, tendo colocado por terra um registro de candidatura concedido e confirmado por todos os magistrados do TRE/PR, ou seja, uma situação jurídica previamente constituída, sob o argumento da pendência de uma inspeção contra Deltan. Mas o verdadeiro impedimento previsto pela legislação consiste na tramitação de processo administrativo disciplinar (PAD).
O relator apresentou ao público a figura de um Deltan fraudador, hábil manipulador de ardis em prol de uma ambição desmedida.
A indevida formulação da hipótese de que a inspeção teria redundado inevitavelmente na instauração de um PAD – o que não se verificou no plano da realidade! – contrariou o consagrado princípio jurídico segundo o qual “o que não está nos autos não está no mundo”. Também afrontou jurisprudência do próprio tribunal, no sentido de ser vedada ao magistrado a ampliação das hipóteses de inelegibilidade. Porém, a premissa lançada pelo relator, e acolhida por seus pares em um piscar de olhos, não parou por aí, e resultou em uma hipótese ainda mais mirabolante. Deltan, supostamente ciente da tal inevitabilidade, teria requerido sua exoneração do Ministério Público no firme propósito de escapar ao PAD, cuja instauração, segundo os togados, seria quase parte do destino do ex-procurador, e teria, desse modo, burlado uma vedação legal com a finalidade de eleger-se a qualquer custo.
E aí reside o detalhe mais capicioso da decisão. Naquela sessão, não estava em jogo apenas o exame da regularidade de um registro eleitoral. Antes, a preocupação residia em traçar, ao arrepio das provas, o pretenso perfil psicológico de um Deltan desenhado a dedo como alguém que não teria hesitado em lançar mão de seus conhecimentos jurídicos para perpetrar “fraude à lei” (expressão repetida à exaustão pelo relator em seu voto), de modo a atingir seus objetivos ainda que em suposta infração ao ordenamento jurídico.
Se mantida a descabida cassação de Deltan e levada a cabo a nomeação de Zanin, terão vencido os velhos donos do poder.
Sob o manto da autoridade conferida pela toga, o relator apresentou ao público a figura de um Deltan fraudador, hábil manipulador de ardis em prol de uma ambição desmedida, e que, para alcançar seus fins políticos, teria incorrido até mesmo em “violação à boa fé objetiva”, praticando condutas contraditórias ao sabor de seus interesses pessoais, e em total desprezo ao Código Civil. Em suma, um vilão! O extremo oposto do herói de outrora, empenhado com unhas e dentes no combate à corrupção e na persecução criminal de ricos e poderosos, até então impunes.
Diante de versões contraditórias sobre um mesmo personagem, qual será a escolhida pelo cidadão médio, aquele que tem de batalhar arduamente pelo ganha-pão e dispõe de pouco tempo e recursos escassos para um maior aprofundamento sobre fatos do domínio político/jurídico? A depender da cúpula togada, que, sem qualquer razão juridicamente relevante e por mera “divergência de CEP”, já havia anulado condenações como as proferidas contra Lula, e declarado uma suposta suspeição do ex-juiz e atual senador Sergio Moro no famoso caso do triplex, prevalecerá a narrativa de que a extinta Operação Lava-Jato não passou de pirotecnia jurídica, e de que seus alvos não foram senão vítimas de um sistema manipulado para a crucificação de certas lideranças políticas.
Contudo, as recentes eleições presidenciais evidenciaram que a população ainda não foi tão facilmente contaminada por uma visão negativa sobre a força-tarefa anticorrupção. Tanto assim que, embora rivalizando com um ex-presidente histriônico e de atuação questionável em áreas sensíveis para a sociedade, como, por exemplo, na gestão da saúde durante a pandemia, Lula teve de enfrentar seu opositor em dois turnos, tendo sido, ainda assim, vitorioso por uma estreitíssima diferença. Venceu o pleito, mas não alcançou a legitimidade esperada, e ainda se viu confrontado por uma oposição, tanto no parlamento quanto na sociedade, que ainda não havia conhecido em seus mandatos anteriores.
Resta saber se uma sociedade inteira assistirá, de braços cruzados, a tamanha arquitetura da destruição.
Portanto, o julgado do TSE, ao defenestrar Deltan por suposta má-fé na obtenção de seu registro, caiu como uma luva em benefício daqueles que sonham em desmoralizar de vez o dito lavajatismo e seus protagonistas, e em retomar a velha aura cândida de “pais dos pobres”.
Por outro lado, como parte dos esforços em desacreditar o legado do combate à corrupção, o presidente Lula tem alardeado sua intenção de indicar ao STF o nome de Cristiano Zanin, seu advogado e amigo próximo, que atuou como seu patrono nos processos em Curitiba, em posição processual oposta a de Deltan, o então acusador. Por razões que dispensam maiores comentários, tal nomeação, aliás, publicamente endossada por vários membros da Suprema Corte, será imoral, e comprometerá a independência do Judiciário, vindo a caracterizá-lo, de forma inequívoca, como longa manus do Executivo.
No entanto, para Lula, a presença de Zanin no Tribunal é medida essencial para enterrar, em definitivo, o seu passado de condenado não-absolvido – uma dessas “jaboticabas” que só existem entre nós –, e para consolidar a versão em torno de sua própria probidade. Ora, se um dos requisitos constitucionais ao ingresso no Supremo consiste na aferição da reputação ilibada, Zanin, uma vez investido na judiciatura, será tido por indiscutivelmente idôneo, e, assim como ele, todas as teses jurídicas sustentadas em sua prática forense, e, sobretudo, os clientes cuja inocência tiver defendido com a melhor verborragia.
Ademais, experiente e astuto, Lula tem perfeita noção de que o universo da política é muito mais o da representação que o da essência, e, por isso mesmo, aspira à criação de uma “Curitiba às avessas”, tornando juiz aquele que, no passado, prestava assistência ao réu, e ainda, como admitido pelo próprio presidente em recente declaração chula sobre Moro, submetendo o ex-magistrado paranaense e até o ex-procurador, agora cassado, à execração pública. Somente então sentirá conforto pleno em sua cadeira presidencial, sufocando quaisquer forças oposicionistas, em particular aquelas mais tradicionalmente ligadas à pauta anticorrupção.
Se mantida a descabida cassação de Deltan e levada a cabo a nomeação de Zanin, terão vencido os velhos donos do poder, e, com eles, os arroubos autoritários, o esquecimento coletivo dos fatos inconvenientes aos senhores de mando, e o atraso que nos tornará ainda mais párias junto à comunidade internacional. Resta saber se uma sociedade inteira assistirá, de braços cruzados, a tamanha arquitetura da destruição.
Katia Magalhães é advogada e tradutora jurídica no Rio de Janeiro (RJ). Mantém o canal Chá com Debate no YouTube e é colunista no Instituto Liberal.