A agressão ética não é um mal menor. Dos Dez Mandamentos de Moisés apenas três podem ser caracterizados como imputáveis pelos modernos códigos penais; os demais estão na esfera da decência
O FMI voltou espetacularmente à ribalta noticiosa graças à reviravolta do affaire Dominique Strauss-Kahn sem que alguém tivesse tempo e ânimo para deter-se na grave denúncia do seu conterrâneo e antecessor, Michel Camdessus. Ex-diretor-gerente da entidade máxima da economia mundial (1987-2000), Camdessus declarou em Madri nesta quarta- feira que "a origem da atual crise econômica mundial é, em primeiro lugar, de caráter ético".
A surpreendente constatação faz parte de um documento elaborado por um grupo de escol das finanças internacionais e conta entre seus signatários com os nomes de Paul Volcker, ex-dirigente do banco central americano, e Horst Köhler, ex-presidente da Alemanha e sucessor de Camdessus no FMI.
A crise das hipotecas subprime nos Estados Unidos em 2007 está produzindo uma tragédia nacional na Grécia, arrasou a Irlanda, Portugal, Espanha, ainda tem fôlego para devastar algumas economias nacionais e tirar a esperança de uma vida melhor para, ao menos, uma geração.
Não se tratou de um acidente de percurso no sistema financeiro internacional, foi uma sucessão de imoralidades na qual a facilitação de empréstimos imobiliários a quem jamais poderia reembolsá-los era apenas um detalhe. O resto foi fruto da letal combinação de ganância, incompetência e irresponsabilidade dos dirigentes das instituições financeiras dos dois lados do Atlântico.
Empenhada em punir crimes, sobretudo os cometidos por espúrios chefes de Estado, a sociedade mundial concentra-se nos ilícitos penais, insensível aos ilícitos morais. Essa perigosa dissociação foi, segundo Camdessus, a responsável pela magnificação do crash financeiro em 2008.
Aqui em nossas plagas, assoladas pela praga da impunidade, a falta de ética assume proporções colossais. O bacharelismo é tamanho que os bandidos já chegam à delegacia policial preparados para responder às infrações de artigos específicos do Código Penal. Como inexiste um Código de Ética escrito ou consensual as malfeitorias morais caem na vala comum dos pecados veniais, desculpáveis e esquecíveis.
Em maio de 1973, na fase mais negra da ditadura, o então ministro da Agricultura, Cirne Lima, acusou frontalmente o seu colega da Fazenda, Antonio Delfim Neto, de converter o governo num "ente essencialmente aético". O acusador foi obrigado a demitir-se e o acusado, além de ter dinamitado o pífio "milagre brasileiro", jamais se deu ao trabalho de esclarecer o episódio.
Desvendado o meteórico enriquecimento do ex-ministro-chefe da Casa Civil Antonio Palocci sua única preocupação foi escapar ilibado de qualquer enredamento no Código Penal. Obtido o arquivamento na Procuradoria-Geral da República, Sua Excelência escafedeu-se da cena pública com os 20 milhões que empalmou em quatro anos de humildes consultorias. Nem o seu denunciante reclamou contra absolvição tão ligeira.
A agressão ética não é um mal menor. Dos Dez Mandamentos de Moisés fundamento moral do monoteísmo e do Ocidente apenas três podem ser caracterizados como imputáveis pelos modernos códigos penais (assassinato, furto e falso testemunho); os demais estão na esfera da decência, consciência e espiritualidade. São centrais, essenciais.
A economia europeia está ameaçada, instituições idealizadas como a União Europeia estão em escombros, refugiados querem escapar não se sabe exatamente de que ou de quem, acampar em praças torna-se a única saída para as multidões de jovens sem perspectivas, a indignação substitui-se às bandeiras políticas, partidos soçobram, as mudanças tecnológicas fragmentam tudo o que encontram pela frente do noticiário à filosofia. Resta incólume, transcendente, o multimilenar e simplicíssimo malefício que Camdessus e outros magos das finanças identificaram como falta de ética.
Alberto Dines é jornalista.