Quando um espaço da cidade se transforma em um lugar, ele está salvo. O lugar é uma porção do espaço apropriada pelo uso, do qual as pessoas se apossam por valores afetivos

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Um grupo relativamente constante de pessoas se encontra todas as manhãs, lá pelas 7h30, e depois volta a se encontrar às 18h30, 19 h. Sempre no mesmo lugar. Há anos. Cumprimentam-se, conversam amenidades. Poucos sabem os nomes uns dos outros. Reco­­nhecem-se pelos cachorros, que levam para passear em praças e jardins ambientais da cidade. Em algumas delas, junto a esses adultos e crianças com seus cachorros, crianças menores brincam na areia, adultos jogam tênis, jovens jogam futebol na quadra, outros fumam cigarros de variada legalidade e ouvem música em uma arquibanca que dá para um muro. Todos se conhecem de vista. E isso traz a sensação de que esse espaço lhes pertence. Sentem-se seguros mesmo na presença constante de andarilhos bêbados, de olhar perdido, que ocupam alguns bancos. Em outros recantos da cidade, isso causaria certo receio; aqui, não. A praça tem dono. Esses adultos, crianças, jovens e cachorros se apossaram dela, fizeram dela o seu lugar.

Quando um espaço da cidade se transforma em um lugar, ele está salvo. O lugar é uma porção do espaço apropriada pelo uso, do qual as pessoas se apossam por valores afetivos. Elas se identificam neste espaço, neste lugar – e o consideram seu, e portanto cuidam dele. Nos lugares da cidade as diferenças fazem parte da paisagem, complementam-se. Possivelmente os pais não considerariam saudável que suas crianças estivessem junto a jovens fumantes em outros lugares; na pracinha, se reconhecem e se identificam. À prefeitura cabe apenas limpá-la, capiná-la, trocar as lâmpadas. Às vezes deslocar uma guarda municipal, só para checar que tudo vai bem. Ganha com isso um lugar seguro e saudável. Retribui com isso os impostos pagos pela população. E não é nenhum favor: nós pagamos a prefeitura para fazer isso. Pagamos os insumos e os seus salários. Ela deve trabalhar por nós – não pode haver nenhuma dúvida de quem manda: somos nós, os que usamos a pracinha. À prefeitura cabe capinar.

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E se não o fizer, tudo sai mais caro. As pessoas abandonam as ruas, abandonam as pracinhas. Os lugares públicos esvaziam-se de significados. São abandonados. Ou, pior, são ocupados por quem não lhe tem afeto – sim, nos afeiçoamos de certos lugares da cidade. E, se abandonados, são destruídos, em similitude com o desamparo no qual essas pessoas vivem. E o processo de recuperação desses espaços, de trazê-los de volta para a cidade, é bem mais trabalhoso, custoso e socialmente traumático (como é o caso da cracolândia, no centro de São Paulo) do que simplesmente ir lá e trocar as lixeiras das pracinhas, manter um calçamento sem os buracos que se alastram em nossas praças. Enfim, capinar.

Ou as pessoas buscam outros lugares. Os shopping centers são o exemplo mais comum. São espaços privados, voltados ao consumo de bens e serviços, e têm seu papel claro nisso; e o fazem bem se assim o fizer. Nada de mal nisso. Mas também, no Brasil em particular, encontraram um nicho: criar a sensação de lugar, ser o espaço que as pessoas podem caminhar sem medo e sem tropeços. Se dia, encontram a sombra, se noite, a iluminação. Tudo o que os responsáveis pela cidade foram deixando de lado, as pessoas encontram nos shoppings. E fazem dele o seu lugar, seu espaço na cidade onde identificam seus grupos, seus valores – se identificam. E daí pode ser tarde.

Diferentemente das pracinhas, os shoppings não aceitam diferenças ilimitadas. Os andarilhos não encontrariam bancos disponíveis. Em alguns shoppings, durante a semana é um público, nos fins de semana, outro. E buscam se evitar. Em alguns shoppings centrais da cidade, os jovens chegam às centenas dos bairros mais periféricos. É legítimo e positivo que venham à cidade, que usem todos os espaços, públicos ou privados de uso público, como os shoppings. Mas será que vêm só por opção ou também por falta de opção? A criação de espaços públicos de qualidade, com calçamento seguro e iluminação, com guarda municipal, é do que precisamos. Os equipamentos de ginástica que se multiplicaram na cidade nos últimos anos é um sinal positivo: se há atrativo nessas praças, elas serão usadas. É tão pouco, é tão barato dar de volta a cidade a seus cidadãos... Basta capinar.

Fabio Duarte, urbanista, é professor de Gestão Urbana na PUCPR.

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Este texto faz parte de uma rodada quinzenal de discussões sobre a cidade. Também integram o grupo os autores Clovis Ultramari, Irã Dudeque e Salvador Gnoato.