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Hoje em dia, quando penso nele, o que me vem à mente é o cheiro dos hambúrgueres do White Castle. Eu morava em Clinton Hill, no Brooklyn, quase ao lado de uma filial do restaurante, um lugar onde nunca tinha pensado em entrar por causa do nome vagamente supremacista. Já ele nunca fez a relação, e, assim, toda vez que vinha ao meu apartamento para beber, fumar e falar de política – o que basicamente resumia nosso relacionamento –, trazia um saco de hambúrgueres. “Quer um?”, perguntava toda vez.

“Não, obrigada”, eu sempre dizia, fazendo o possível para ignorar o cheiro gorduroso e oferecendo-lhe mais vodca para que, quando finalmente trocássemos uns beijos, sua boca já tivesse se livrado do gosto da carne.

O White Castle se destacava na Atlantic Avenue. Acho que fomos lá só uma vez, já bem tarde, em uma noite quente de julho. Lembro que, enquanto ele fazia o pedido, pus uma moeda na máquina que vendia brinquedos e recebi um ovinho de plástico. Mais tarde, quando o abri, já em casa, descobri um pedaço daquelas fitas isoladoras usadas pela polícia, com destaque para a palavra “atenção”.

“Você não percebe o tamanho da trapalhada? E nem vamos falar de onde o restaurante conseguiu esse negócio, né. Não acha um horror agir como se isso fosse brinquedo?”, eu disse. Resposta: “Você está exagerando.”

Você pode começar a enxergar duas cidades cada vez que sai de casa – a que existe hoje e a que vive na sua lembrança

Bom, acho que essa passagem resume tudo que você precisa saber sobre como e por que nosso relacionamento acabou.

O White Castle continua de pé, só que abandonado. Está coberto por um tecido sujo e rasgado que se agita ao vento e o letreiro está em pedaços, mas toda vez que passo por ele de carro, com meu companheiro, nas manhãs de domingo, digo: “Eu costumava frequentar esse White Castle...”

“Com aquele idiota que você namorou. Sim, eu sei”, ele interrompe.

Ele tem seu próprio mapa de amores passados. Há parques e esquinas por que passaremos e ele certamente se lembrará de outra época, andando de mãos dadas com outro alguém, muitos verões atrás.

Se você mora em Nova York há muito tempo, namora e faz amizades aqui, acaba criando seu próprio mapa da cidade e dos lugares que o deixam nostálgico, que fazem com que queira voltar dez anos no tempo ou que o fazem dar graças pela passagem dos anos.

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O Freddy’s não está mais na esquina da Dean Street com a Sexta Avenida há anos, mas, toda vez que passo pelo lugar onde ficava, lembro a noite em que eu e alguns amigos escritores meio que batemos boca com uns poetas da NYU, saímos do bar que ficava no West Village para comprar US$ 60 em cachorro-quente no Gray’s Papaya para uns amigos que tinham ficado, só para voltar e descobrir que a casa tinha fechado; ficamos parados um minuto na esquina, tentando pensar em um jeito de levar nove pessoas e 25 sanduíches para o Brooklyn para continuar a festa... e demos a maior sorte, pois, de repente, saída do nada, chegou uma limusine branca que parecia interminável.

O motorista se ofereceu para nos levar para o lado de lá da ponte se cada um lhe desse US$ 10. Pedimos que nos levasse ao Freddy’s. Chegamos lá à uma da manhã e ficamos até as quatro, quando então saímos aos tropeções, rumo ao meu apartamento, para dormir um pouco. Quando passo naquela esquina, é só o que vejo. Imagino que sempre será assim, mesmo se os guindastes amarelos construírem um condomínio imponente e ridiculamente caro em seu lugar.

Essa é uma lembrança de amor platônico, não romântico, mas, quando todos os lugares que você associa com essa emoção se tornam um mapa fantasma, você pode começar a enxergar duas cidades cada vez que sai de casa – a que existe hoje e a que vive na sua lembrança, mais pura, mais suja, mais triste e mais feliz do que qualquer coisa que viva no agora.

Em entrevista na antologia de 1983 de Claudia Tate, Black Women Writers at Work, Toni Morrison disse: “Do ponto de vista ocidental, o amor é possessivo, cheio de distorções e corrupção. É carnificina sem sangue.” Ela identificou a ideia em que as mulheres acreditavam, a de que o amor exige transformação, e viu quanto a noção poderia ser perigosa. “Com o pretexto de amor e mudança, você destrói tudo em si, no outro, nos filhos”, disse ela.

A mudança também faz parte de nossa compreensão da cidade

Não ouvi essas palavras quando era mais nova; só sabia que resistira a essa barganha de amor durante um bom tempo. Não queria ser mudada – ou melhor, minha impressão era a de que havia outras coisas, como ler livros, escrevê-los, vivenciar coisas, fazer amigos que eu queria que me mudassem primeiro, antes que o romance o fizesse. Quando você se apaixona e se casa com trinta e poucos, é uma luta discernir que partes de si mesma está disposta a mudar para manter essa emoção tão fugidia e que pode ter tão poucas recompensas.

A mudança também faz parte de nossa compreensão da cidade – que ela deve estar em constante mutação, destruindo a si mesma e às comunidades que as pessoas constroem para poder crescer, viver e continuar poderosa. O que significa fazer do seu lar um lugar com essa fome de transformação? “Não sei como você consegue viver em Nova York”, minha irmã me diz, e morro de vontade de responder: “Não sei como você consegue viver em um casamento.”

Bom, só que agora eu também estou casada e esta cidade continua se reinventando. Tem certas semanas, como a passada – quando o sol mostrou a cara e eu, descendo a minha rua quando uma senhora das Índias Ocidentais acertou o passo com o meu e começou a elogiar o bairro e a descrever o vídeo do YouTube que sua amiga lhe enviara de Barbados –, em que parece o único lugar em que eu poderia viver.

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Já em outras, quando vejo três restaurantes diferentes na mesma madeira clara, com as mesmas trepadeiras e a mesma decoração dourada, com um deles anunciando que aceita bitcoins, acho que este seria o último lugar em que deveria me fixar.

Faz só um ano que estou casada, mas posso dizer, pela parte que me toca, que tem sido um período de reconstrução contínua do meu “eu”, da forma como reajo – ou não – ao meu parceiro, de quanto espaço abro para outra pessoa enquanto continuo a cuidar de mim. A diferença é que isso já não me assusta mais: os bares e restaurantes e parques e cafés e bares de cobertura e galpões e porões de todas as minhas aventuras e fracassos românticos foram postos abaixo, substituídos por start-ups.

Mas, nos anos em que eles ainda viviam, li minha Toni Morrison e depois, minha Octavia Butler, que escreveu: “Você muda tudo que toca, e tudo que você altera também o modifica. A única verdade duradoura é a mudança. Deus é mudança.”

Kaitlyn Greenidge é autora de “We Love You, Charlie Freeman” e contribui para a coluna de opinião.
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