Este texto poderia começar com a definição de “justiça social”. Mas, por serem diversas as conceituações, contaremos com o entendimento médio do leitor, que é suficiente. Por outro lado, definiremos aqui “justiceiro social” como indivíduo que pratica a intolerância na defesa de um mundo mais tolerante. Utilizando-se de ferramentas retóricas pós-modernas como a problematização, o controle da linguagem mediante o politicamente correto e a desconstrução, o justiceiro social consegue convencer a si mesmo que sua atitude não se compara à de seus inimigos, denominados de fascistas, racistas, homofóbicos etc. Para ilustrar ao leitor, segue declaração de um “educador” sobre a tentativa de homicídio contra um então candidato à Presidência :
“Agora, falando sério: o episódio da faca não foi intolerância como os defensores do candidato e a direita fascista desse país afirmam. Ao contrário, o episódio da faca foi a legítima defesa contra a intolerância que o candidato prega (...) Foi a legítima defesa dos oprimidos. Foi a revolta contra o fascismo, contra o ódio pregado todos os dias, em todos os lugares pelo candidato fascista e seus asseclas (capangas), incentivados por uma direita burra e cruel.”
O justiceiro social cobre sua atitude, e a dos seus, com o manto imaculado da virtude e do heroísmo
Dispensaremos aqui a explicação sobre o instituto da legítima defesa. No trecho em análise percebe-se que o conceito foi “desconstruído”, possibilitando seu uso para requalificar a violência, sem atribuir qualquer valor negativo ao ato do agressor. Assim, dotado da convicção de que a sua luta é para o bem maior, o justiceiro social cobre sua atitude, e a dos seus, com o manto imaculado da virtude e do heroísmo. Ele foi “necessário” e, por isso, deve ser tratado de modo “diferente”.
Muito se especula sobre quando e como aconteceu o surgimento de pessoas que justificam essas atitudes. Ele coincide com o advento da corrente pós-modernista nos mais variados setores. Stephen Hicks, em Explicando o pós-modernismo, traça uma linha do tempo desde a resposta ao racionalismo na idade pré-moderna, até finalmente a forma completa do pós-modernismo, culminada com o surgimento do marxismo. Coincidência ou não, a luta de classes tem influência nos justiceiros sociais, visto se imaginarem combatentes das desigualdades que atingem as “classes oprimidas”, identificadas como minorias.
Facadas à parte, pergunta-se: ora, qual seria o problema em radicalizar na defesa de algo tão bom como a igualdade, a ponto de, em seu nome, “legitimar-se” o impedimento de manifestações artísticas, a ameaça a palestrantes e o ataque – físico e virtual – à pessoa do oponente? Não fossem coisas para nos preocuparmos, este texto seria em vão.
Luiz Felipe Pondé: Tipologia da esquerda contemporânea (publicado em 21 de agosto de 2017)
Leia também: Para onde vai a “nova esquerda”? (artigo de Demétrio Magnoli, publicado em 3 de dezembro de 2017)
Porém, há consequências piores. A principal é o surgimento de novas formas de intolerância disfarçadas de “reação do oprimido” . É possível encontrar declarações sobre brancos, heterossexuais, cristãos e homens, tão criminosas quanto as que seriam combatidas pelos justiceiros sociais. O que as torna mais perigosas, todavia, são os apadrinhamentos concedidos por influenciadores, pensadores e intelectuais. É o caso, por exemplo, da afirmação contundente de que um afrodescendente jamais poderia ser racista contra um branco por causa da “dívida histórica” e das “estruturas de poder”. Ora, se verificarmos a legislação de injúria racial e de racismo, não encontraremos essas excludentes ou atenuantes.
Tal prejuízo não afeta somente os alvos primários, a “maioria opressora”, mas também os próprios “oprimidos”. A figura do “cidadão médio” tem influência na disseminação ideológica. As atitudes ultrarradicais contra ele têm o poder de reforçar preconceitos já existentes e afastar de vez quem poderia ser um aliado na luta pelo respeito às diferenças. A relativização conceitual (absoluta) que amplia o conceito de “machismo” para o fato de se olhar uma mulher na rua, ou rir de uma piada, posiciona o cidadão que talvez tenha nisso seu maior pecado no mesmo patamar de um estuprador. Tal abordagem acaba por gerar aversão da população, sendo ela constituída majoritariamente por pessoas assim. Passam a ter ojeriza pelos que agem assim enquanto empunham a bandeira de defesa das minorias. E, imediatamente, em face do esdrúxulo, a sociedade responde mediante redução dos problemas reais ao status de “mimimi”.
Rodrigo Constantino: A esquerda e o crime (publicado em 25 de março de 2018)
Neste período em que a polarização caminha para o seu ápice, é necessária reflexão sobre esses militantes. Ou seja, vale fazer com eles o que eles próprios fazem com os demais: problematizar os problematizadores. E, então, lhes perguntar: apontar o dedo para alguém é a melhor forma de atrair essa pessoa? Tal atitude não revela antes que seu autor está inebriado em uma atmosfera de guerra ideológica, na qual se autoproclama como o “iluminado”, o “libertador”, superior a todos? Antes que gerar igualdade real e favorecer um mundo mais pacífico, ele está a reforçar dissonâncias que legitimariam a necessidade de sua existência como “salvador”. Tal atitude não é de quem luta contra o discurso de ódio, mas de quem vive dele e, por isso, alimenta-o. E, nesse agir, serve, consciente ou inconscientemente, à luta de classes. O que menos lhe importa, efetivamente, são “os outros” ou a paz social. Afinal, sem a luta de classes, ele perderia seu papel social.
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