Transporte de órgãos para transplante.| Foto: Bigstock
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Anualmente o mês de setembro é utilizado para rememoramos e divulgarmos a temática da doação de órgãos. O Paraná iniciou há quase uma década uma série de recordes nesse quesito, passando de uma taxa de doadores efetivos por milhão de população (pmp) de 10,7 em 2011 para 43,8 em 2019. Em comparação, a média brasileira é de 18,1 pmp, segundo a Associação Brasileira de Transplante de Órgãos. Esses números têm beneficiado milhares de pacientes em um sistema eminentemente público e regulado pelo Estado, em um daqueles elogiosos – e infelizmente parcos – exemplos de eficácia da gestão pública.

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Essa verdadeira revolução iniciou-se na primeira gestão Beto Richa, decorrente de um amplo programa de reestruturação do Sistema Estadual de Transplantes, que, utilizando de seus braços no estado, nomeados Organização de Procura de Órgãos, passou a atuar dentro das instituições hospitalares em simbiose com as Comissões Intra-Hospitalares de Doação de Órgãos e Tecidos para Transplante (CIHDOTTs). Esse modelo vislumbra a busca ativa de potenciais doadores de órgãos diuturnamente. Essa mudança de paradigma, exemplo para o país inteiro e mantido na gestão Ratinho Junior, desde o início é capitaneado pela médica Arlene Terezinha Cagol Badoch. Precisamos reconhecer méritos e nomear atores políticos quando executam decisões acertadas.

O termo “busca ativa de doadores em morte encefálica” pode parecer estranho ao leigo, porém meramente significa fornecer um diagnóstico correto – a morte – para pacientes com lesões encefálicas irreversíveis. São esses pacientes os potenciais doadores; todos eles deveriam ser identificados e notificados. Somente após esse diagnóstico é que a família é abordada e questionada sobre uma possível doação. Vindo a negativa familiar para a doação, o tratamento se encerra e os aparelhos que dão suporte são desligados.

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Esse ciclo revolucionário no estado teve início com o aumento da notificação dos potenciais doadores, confirmação da morte encefálica e utilização deles em todas as regionais de saúde do estado. Nos primeiros anos era observado um importante impacto no número de doações secundário aos índices de negativa familiar, de 35% em regra.

Sem consentimento familiar não há doação. A doação intervivos é incapaz de fornecer meios de tratamento para todos que precisam, não é uma alternativa factível.

As emoções regem a doação de órgãos, não a racionalidade. Quando a família nega a doação, esse ato reflete um desejo expresso pela pessoa morta, o desconhecimento do seu desejo ou, ainda, as impressões da família acerca do tema. É no território das impressões que surge o busílis.

Tomo humildemente as palavras do emérito professor de Clínica Médica da Pontifícia Universidade Católica do Paraná João Manuel Cardoso Martins: “Sabemos que informação não muda comportamento; para tal essa tem de ser processada, assimilada e ainda virar convicção. É um longo caminho que passa não apenas pelo raciocínio lógico e analítico, mas principalmente pelas impressões, território carregado de emoções”.

Impressões negativas relacionadas ao transplante envolvem questões relacionadas ao funcionamento do sistema, ao diagnóstico da morte encefálica e a diversos mitos que circulam na sociedade. É razoável supor que a informação – transplante é bom, precisa haver doador – sempre foi de conhecimento público, mas as taxas de negativa à doação demonstravam uma falta de convicção, e é isso que foi modificado paulatinamente nesses anos.

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Objetivando a redução dessas taxas, investiu-se no treinamento e experimentação das equipes das CIHDOTTs na abordagem das famílias enlutadas. Técnicas de acolhimento e de linguagem impactam muito na dissipação dos mitos e das dúvidas da família. Mas essa intervenção, em um momento de emoção, objetiva aflorar a convicção na doação. Essa convicção precisa estar lá, em algum lugar.

Eis que chegamos ao elo final desse ciclo: os pacientes que foram beneficiados. Inicialmente alimentado pelo aumento do número de potenciais doadores, mesmo que em um momento em que a taxa de negativa ainda era alta, o número de transplantes realizados devolveu milhares de pacientes ao convívio social e familiar. A sociedade paranaense viu os beneficiados com um transplante no seu dia a dia, uma informação vaga de auxílio ao próximo foi materializada. A impressão foi se tornando convicção.

As taxas de negativa foram reduzidas a 16,3% em 2019, segundo dados da Central Estadual de Transplantes do Paraná. Em termos numéricos isso acaba refletindo em um potencial aumento de 159 doadores ao ano. Ao considerarmos que cada doador beneficia, em média, cinco pacientes, praticamente temos mais mil pacientes beneficiados ao ano em virtude da queda da taxa de negativa familiar. Novamente, para percebermos o impacto dessa taxa, a recusa familiar no país é de 40%.

O ciclo notificação-doação-transplante com o retorno do paciente à sociedade está sedimentado em nosso estado. Tal visão, se ainda existiam dúvidas, foi cristalizada durante a atual pandemia. O sistema continua funcionando perfeitamente – até com índices melhores – mesmo no atual momento de pandemia, contrastando com todos os outros estados brasileiros. O Sistema Estadual de Transplantes do Paraná é definitivamente um sucesso, exemplo de gestão pública em parceira com os prestadores de serviço hospitalares. Nosso estado tem a convicção de que o transplante é capaz de beneficiar todos os paranaenses.

Fábio Silveira é médico do Instituto para Cuidado do Fígado e Hospital do Rocio.

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