Nos últimos meses, morreram mais pessoas tentando atravessar o Mediterrâneo, de países pobres para ricos, do que em 28 anos de tentativas de pular a Cortina de Ferro, dos países socialistas para os países capitalistas. Estima-se que 280 pessoas morram a cada ano tentando atravessar a fronteira entre a América Latina e os Estados Unidos. A solução para barrar essa imigração tem sido a construção de muros físicos, como no sul dos EUA, ou postos policiais em todas as partes que separam o mundo rico do mundo pobre.
O número de mortes é muito maior se consideramos aqueles que morrem por não ter dinheiro para saltar os muros dos bons hospitais em busca de atendimento médico com qualidade, em vários cantos do planeta.
O mundo derrubou a Cortina de Ferro, separando a escassez nos países socialistas dos benefícios nos capitalistas, mas no lugar construiu uma imensa Cortina de Ouro que serpenteia o planeta por dentro de cada país, separando as necessidades dos pobres dos privilégios dos ricos.
O que aconteceu à margem da Ilha de Lampedusa chama atenção pelo tamanho da barbaridade concentrada com a morte de mais de 350 imigrantes que buscavam sair da pobreza da África para a riqueza da Itália. Mas todos os dias morrem muito mais pessoas na mesma tentativa de fugir da pobreza, saltando qualquer muro que faz parte da Cortina de Ouro presente, inclusive, nos muros das escolas, que impedem crianças de famílias de baixa renda de entrar em cursos com qualidade. E é este pedaço da Cortina de Ouro que cria todos os demais pedaços. Uma famosa foto mostra, de um lado de muro, um edifício de apartamentos de luxo no bairro Higienópolis, em São Paulo, e, no outro, uma favela chamada Paraisópolis. O muro separa os dois lados de universos sociais diferentes. Este é um exemplo físico, concreto, da Cortina de Ouro. A escada que permitiria o salto de um lado para o outro seria colocar as crianças dos dois lados em escolas com a mesma qualidade.
Mas a Cortina de Ouro está sendo consolidada entre países, por muralhas ou polícia de fronteira; e dentro de cada país, pelos muros de shopping centers, de escolas, de hospitais e de condomínios. A civilização parece estar preferindo fazer uma humanidade dividida a espalhar entre todos os benefícios construídos pela modernidade. O Brasil é um exemplo dessa civilização. Somos um país dividido, com a população separada por uma Cortina de Ouro.
A tarefa dos abolicionistas foi derrubar, por uma lei, o instituto da escravidão. A derrubada da Cortina de Ferro foi possível pelos martelos nas mãos dos moradores de Berlim Oriental. A derrubada da Cortina de Ouro só será possível com leis que assegurem ao professor brasileiro o máximo reconhecimento. Mas parece que estamos longe disso. Talvez não seja coincidência que, na semana em que morrem africanos fugindo para a Itália, em plena semana do professor, tenhamos mestres em greve no Brasil, em busca de pequenos aumentos salariais, inclusive sendo vítimas de policiais.
Ao cometer o crime de depredar bens públicos ou privados, os manifestantes estão, provavelmente, sem saber e por caminhos errados, lutando para derrubar a Cortina de Ouro, como os berlinenses fizeram com a Cortina de Ferro.
Cristovam Buarque é professor da UnB e senador (PDT-DF).