A crise da masculinidade contemporânea é uma realidade palpável, marcada por transformações profundas no tecido social e cultural. Homens em todo o mundo enfrentam um cenário de incerteza sobre seus papéis tradicionais, enquanto lidam com expectativas contraditórias sobre o que significa ser um homem no século XXI. Essa crise, contudo, não deve ser vista apenas como um sintoma de perda de privilégios. Trata-se de um desafio real de identidade, exacerbado pela rapidez das mudanças nas dinâmicas de gênero e pela falta de referências sólidas para a masculinidade. No entanto, para que possamos avançar, é necessário encontrar um caminho de equilíbrio entre tradição e adaptação, sem ceder a extremismos.
Historicamente, a masculinidade foi construída sobre valores como liderança, força e responsabilidade. Edmund Burke (em Reflections on the Revolution in France) e Roger Scruton (em Conservatism: An Invitation to the Great Tradition) defendem que a ordem social é mantida por essas virtudes, que atribuem ao homem o papel de estabilizador das instituições sociais e familiares. Para Burke, a ideia de responsabilidade masculina é parte de um contrato entre gerações, em que o homem atua como protetor das tradições e dos princípios que sustentam a sociedade. Scruton, por sua vez, destacava que a masculinidade é uma força centrípeta, que mantém o tecido social coeso ao equilibrar autoridade e sensibilidade.
A crise da masculinidade no século XXI não deve ser vista como uma guerra contra o masculino, mas sim como uma oportunidade para a redefinição de papéis que equilibrem tradição e modernidade
Contudo, as mudanças modernas questionaram esses papéis de forma legítima. O machismo estrutural, a repressão emocional e a objetificação das mulheres como parte de uma masculinidade “rígida” são falhas amplamente reconhecidas. O sociólogo Michael Kimmel (em Angry White Men: American Masculinity at the End of an Era) observa que, em muitos aspectos, a masculinidade foi construída com base na exclusão de características não tidas como masculinas e na negação das fraquezas masculinas.
O processo de desconstrução da masculinidade tradicional criou um vácuo identitário para muitos homens. O rápido declínio da centralidade masculina em posições de liderança social, combinado com as novas expectativas de igualdade de gênero, deixou muitos homens sem referências claras sobre seu papel na sociedade. Esse vácuo tem sido explorado por figuras reacionárias e extremistas, que oferecem modelos de masculinidade agressivos e reacionários. Influenciadores como Andrew Tate e grupos como os incels transformam o ressentimento masculino em um discurso de ódio e rejeição das mudanças sociais, sugerindo um retorno a um passado idealizado em que os homens ocupavam papéis indiscutíveis de poder — reacionarismo puro, um dos comportamentos sociais que o conservadorismo combate.
Theodore Dalrymple, em vários de seus ensaios, alerta para os perigos do ressentimento, especialmente entre os homens jovens que, privados de uma noção clara de suas responsabilidades, recorrem a ideologias extremas ou à criminalidade. Para Dalrymple (ver Life at the Bottom: The Worldview That Makes the Underclass), a crise da masculinidade é uma crise moral, em que muitos homens não têm mais uma base sólida de virtude para guiar suas vidas. Ele defende que a masculinidade deve ser redefinida em termos de responsabilidade pessoal e altruísmo, e não de poder e dominação. Uma argumentação impecavelmente lógica, cogente e aderente à realidade.
O que se faz necessário, então, é a construção de um novo modelo de masculinidade que reconcilie o melhor da tradição com as exigências de uma sociedade mais igualitária. Michael Oakeshott (ver Rationalism in Politics and Other Essays) argumenta que a mudança é inevitável, mas deve ser conduzida com prudência e respeito à tradição. Assim, a nova masculinidade deve manter valores como coragem, liderança e responsabilidade, enquanto rejeita a violência e a dominação como formas de afirmação.
Um exemplo marcante de masculinidade madura e não tóxica é Mahatma Gandhi. Gandhi não apenas redefiniu a resistência como uma forma pacífica de luta, mas também demonstrou que o verdadeiro poder masculino reside na autodisciplina e no controle emocional. Seu conceito de satyagraha (resistência pela verdade) não só rejeitava a violência física, mas também envolvia o desafio de confrontar a si mesmo, dominando as próprias paixões e vaidades. Ao optar pelo diálogo, pela negociação e pela não violência, Gandhi mostrou que a masculinidade pode ser usada para construir pontes, promover a justiça e lutar por direitos sem recorrer à agressividade. Seu exemplo de liderança moral, mesmo diante de uma sociedade que tradicionalmente via o poder masculino como dominador, é uma lição atemporal sobre a possibilidade de ser forte e pacífico ao mesmo tempo (em linhas gerais, são argumentos do Dalrymple que recupero aqui).
Além de Gandhi, a masculinidade não tóxica também é exemplificada pelo astronauta Neil Armstrong. No filme First Man, vemos uma representação de Armstrong como um homem calmo, humilde e extraordinariamente responsável. Ele não busca os holofotes, mas se compromete com seu dever e sua missão, enfrentando imensos desafios com autocontrole e foco. Theodore Dalrymple, em seu ensaio Untoxic Masculinity, observa como Armstrong personifica uma masculinidade baseada na competência e na modéstia, características que contrastam fortemente com as representações tóxicas de masculinidade que glorificam o ego e a agressividade. Armstrong demonstra que a força masculina não precisa ser barulhenta ou dominadora; pode ser silenciosa, focada e profundamente humana.
Esse novo modelo de masculinidade deve incorporar valores como empatia, autocontrole e compromisso com os outros. A força masculina, nesse contexto, não reside na dominação ou na repressão emocional, mas na capacidade de agir com responsabilidade e cuidado. Homens que encarnam esses valores estão preparados para os desafios do mundo moderno, sem precisar recorrer a extremismos ou ressentimentos.
Como observa Jordan Peterson (ver 12 Rules for Life), muitos homens jovens carecem de figuras paternas ou mentores que os orientem a assumir responsabilidade por suas próprias vidas. Embora Peterson tenha gerado controvérsia em algumas de suas declarações, sua ênfase na importância de pequenos atos de ordem pessoal, como “arrumar o quarto”, tem grande apelo para homens que buscam uma nova direção. Essa ideia de responsabilidade pessoal é crucial para a formação de uma masculinidade madura e equilibrada.
A crise da masculinidade no século XXI não deve ser vista como uma guerra contra o masculino, mas sim como uma oportunidade para a redefinição de papéis que equilibrem tradição e modernidade. Homens devem ser capazes de incorporar tanto a força quanto a vulnerabilidade, sem recorrer a modelos ultrapassados de poder e dominação. Como bem argumenta Dalrymple, a chave para uma nova masculinidade está na responsabilidade moral e no compromisso com os outros. Não se trata de abandonar as virtudes tradicionais, mas de reinterpretá-las à luz das novas realidades sociais. A verdadeira força masculina, afinal, reside na capacidade de evoluir com o tempo, sem perder de vista os valores que sustentam a sociedade.
Marcos Pena Júnior é economista, filósofo e escritor; pesquisador do Núcleo de Filosofia Política do LABÔ da PUC-SP; autor de “Do riso às lágrimas: poemas contra ressentimentos” (2021) e “Visagens nossas de cada dia: uma história da Independência” (2022). Pode ser encontrado nas redes sociais em: @marcospenajr.
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