Nos últimos dias de junho, julgamentos da Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) envolvendo réus da Lava Jato evidenciaram a divisão desta corte em relação ao andamento da operação, e expuseram a politização da corte neste caso. A apontada derrota do relator da Lava Jato, ministro Edson Fachin, desde uma perspectiva constitucional, ilustra um embate entre garantismo e punitivismo; pelo prisma político, reflete a crise de legitimidade do STF.
A Constituição Federal criou um sistema de direitos e garantias fundamentais que visa proteger o cidadão de eventuais violações de direitos, perpetradas em geral pelo Estado. O sistema protetivo combina o exercício pleno de direitos de liberdade (locomoção, associação, expressão, crença etc.) com suas respectivas garantias (habeas corpus, habeas data, mandado de segurança, entre outros), além de mandamentos constitucionais que buscam assegurar o devido processo legal (princípio da legalidade, da presunção de inocência, do contraditório, da ampla defesa, do juiz natural, da prisão apenas após o trânsito em julgado da decisão etc.). A combinação de direitos e garantias resulta em um sistema garantista.
No arranjo institucional vigente, ao STF compete a defesa da Constituição, e a Carta é garantista; então, é dever de todo ministro atuar de forma garantista. O comportamento punitivista contraria a Constituição, mesmo que suas decisões possam encontrar eco em um suposto “clamor popular”, “natural” ou fabricado. As decisões recentes da Segunda Turma – conceder habeas corpus a José Dirceu, inocentar a senadora Gleisi Hoffmann, paralisar uma ação contra o deputado Fernando Capez e libertar o deputado João Cláudio Genu –, todas contrárias ao entendimento do ministro Fachin na ocasião, expressaram o garantismo. O argumento de que elas favorecem a impunidade é ingênuo e retórico: nada ameaça mais uma sociedade do que a sensação de que apenas alguns direitos, de poucos cidadãos, dependentes da vontade do agente público, são respeitados.
O comportamento punitivista contraria a Constituição
Afirmar o viés garantista da Segunda Turma, contudo, é equivocado e simplista porque, essencialmente, as posições garantista e punitivista dos ministros, salvo exceções, são casuísticas e podem oscilar conforme o réu, o momento, a oportunidade, a visibilidade e o clamor popular, por vezes afastando-se do texto legal. O comportamento pendular e inconsistente dos ministros encontra melhor explicação em uma análise de viés político.
O protagonismo político do Judiciário que se verifica no Brasil é, em certa medida, incompatível com o equilíbrio e harmonia entre os poderes, assentado no sistema de “freios e contrapesos”. Sem a legitimidade das urnas, a salvaguarda do STF está na defesa da Constituição, em sua atuação imparcial e independente, e na legitimidade de suas decisões.
Ministros têm o dever de defender a Constituição vigente, e não a “sua” Constituição, daí a importância da imparcialidade do juiz. O juiz imparcial não tem lado, não tem torcida e não tem vontade. O cidadão juiz certamente as tem, mas a legitimação do exercício da sua função jurisdicional depende da separação entre a esfera privada de suas convicções e a esfera pública expressa no seu comprometimento na defesa da Constituição e da ordem jurídica.
O Judiciário deve também ser independente, não apenas em relação aos poderes Executivo e Legislativo, mas também em relação aos outros atores detentores de poder econômico, político, social, midiático e carismático. Julgamentos que se afastam da norma e atendem a interesses de grupos poderosos não são independentes.
A percepção de que os julgamentos Segunda Turma retratam “derrota do relator”, “manobra interna” ou “reação aos excessos da Lava Jato” comprometem a legitimidade da Justiça. Justificá-los com base nas preferências pessoais dos magistrados, nos jogos de poder internos no STF ou no sucesso de manobras políticas coloca em risco o capital simbólico do STF.
Distanciado do dever de defender a Constituição garantista que, muito machucada, fará 30 anos em outubro, o STF, ao enfraquecer o seu capital simbólico, ameaça a Justiça e coloca em risco a democracia no país.