A crise política pela qual passa a República do Peru demonstra, de alguma forma, os impasses e desgastes existentes na moderna democracia exercida no Ocidente. O regime popular, que fora concebido historicamente na prática política e no embate entre partidos, está sendo reduzido à conveniência de burocracias parlamentares e a interesses difusos, mas não necessariamente constituídos em nome do povo. Trata-se de disputa e concentração de poder.
A democracia, embora presente em quase todo o mundo, não passa por bom momento. É fato que suas diversas questões são diferentes entre países de realidade sociopolítica distintas. O que ocorre por causa de impasses institucionais na Europa Ocidental, por exemplo, não guarda semelhança com o que acontece na América Latina, Japão e Canadá.
De modo paradoxal, a democracia que elege um presidente é a mesma que o retira do poder, mas nem sempre de modo justo.
Em 2021, Pedro Castillo foi eleito presidente da República. Sua gênese política é de simples professor de colégio, considerado provinciano ao sistema eleitoral do Peru. Castillo não foi formado nas elites econômicas e sociais de Lima, mas no interior do país, um outsider. Por outro lado, o jogo partidário no Parlamento peruano é dominado pela oligarquia, que é desdobramento da aristocracia agrária, da classe dos criollos dos tempos da colonização.
Essa classe oligárquica, bancando o jogo partidário no Parlamento, demonstra sua visão de mundo excludente perante o grande setor da sociedade peruana, o dos chollos, da pobre população mestiça. Aqui, há o grande conflito que esgota a política peruana: entre a oligarquia dominante nas decisões políticas e a população propriamente dita, boa parte excluída.
Pedro Castillo foi eleito por plataforma progressista, porém, sua atuação não combinava com a cultura da nova esquerda instalada em partes da América Latina. Na região, a pregação desse grupo é a favor do gerenciamento ambiental, de caráter internacional, de medidas a favor do aborto e da adoção da premissa do aquecimento global como a grande questão nacional, dando espaço às sugestões do mundo pós-industrializado. Isso significa que o governo de Castillo não era semelhante ao de seu homônimo no Chile e na Colômbia. O peruano deu a entender que não se vinculava à agenda global para 2030, igual a Boric e Petro.
A disputa eleitoral de 2021 elegeu Castillo contra Keiko Fujimori, representante da direita, mas não obrigatoriamente ligada à elite peruana ou à oligarquia que agora defenestra Castillo. A democracia, pelo voto da maioria, deu vitória a Castillo, mas esse mesmo regime não teve condições de manter seu governo. De modo paradoxal, a democracia que elege um presidente é a mesma que o retira do poder, mas nem sempre de modo justo.
Tal operação de retirada não ocorre, obrigatoriamente, porque o governante prevarica ou rouba dinheiro público, mas sim pelo fato de não combinar com o ideário das denominações que controlam a política nacional. Os recentes acontecimentos no Peru revelam esse desgaste programado do regime democrático, apesar de tudo, lá existente. O Peru é uma democracia? De modo protocolar, há como responder que sim, mas qual é sua qualidade?
O desgaste da democracia, como expressão da vontade popular, também ocorre na Europa Ocidental, não sendo exclusividade dos países periféricos. No Velho Mundo, o esgotamento é resultado do excesso de burocratização, que contribui para a esterilização das iniciativas nacionais dos países membros da União Europeia, bem como para a ascensão de uma classe de administradores “desconhecidos”, mas com poder de decisão em Bruxelas.
O que é congruente sublinhar é que o Parlamento peruano já derrubou quatro presidentes por razões capciosas. Os deputados em Lima alegam que o Executivo em questão erra por “incapacidade moral”, termo que dá margem a uma imensidão de interpretações. Uma interpretação dessa incapacidade moral é a incompetência administrativa por parte do mandatário. Será que os quatro impedidos pecaram por incompetência administrativa? Será que, necessariamente, o Parlamento é a fonte de todas as virtudes?
A própria vice-presidente (agora presidente) Dina Boluarte já havia desagradado o Parlamento a ponto de ficar na mira dos opositores para ser derrubada. A democracia no Ocidente permite debate e trânsito de ideias, mas, no final, ela cai à mercê de grupos que se instalam no cerne do Estado e, em nome da democracia, decidem quem vale e quem não vale em nome do povo. Eis uma questão que também deve envolver o Brasil, embora seja diferente do Peru.
José Alexandre Altahyde Hage é professor do Departamento de Relações Internacionais da Escola Paulista de Política, Economia e Negócios (EPPEN), da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), campus Osasco.
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