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A “cultura do cancelamento”: infantilidade e totalitarismo

Censura prospera na cultura do cancelamento
Censura prospera na cultura do cancelamento. (Foto: BigStock)

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Ao menos até meados dos anos 2000 era comum fazer assinatura de jornais e revistas. Muitos estavam felizes com esses serviços. E se, por alguma razão, se vissem insatisfeitos, certamente poderiam optar pelo cancelamento de sua assinatura. Com o avanço da internet, a ideia de cancelamento passou para o patamar digital: podia-se agora cancelar um download ou mesmo a assinatura de algum serviço on-line. De fato, todos nós, usuários da internet, sabemos muito bem o que significa cancelar uma assinatura digital.

Acontece que, mais recentemente, a ideia de “cancelamento” ganhou novos contornos, pois aquilo que era mera opção pessoal passou a ser uma poderosa ferramenta de justiçamento social: agora já é possível “cancelar” pessoas! Isso mesmo. Estamos diante da chamada “cultura do cancelamento”: em resumo, a ação de boicotar e banir uma pessoa de algum espaço de reconhecimento público, de modo a fazê-la perder seguidores, contratos, emprego etc. Algo como “apagar a pessoa do mapa” em termos sociais.

Está claro, portanto, que há uma enorme diferença entre as “antigas” atitudes de cancelamento, que eram atitudes individuais de insatisfação, e a recente “cultura do cancelamento”, que é um fenômeno coletivo. Por exemplo: para cancelar um jornal, o sujeito dos anos 2000 precisava apenas se incomodar – pessoalmente – com alguma coisa relativa ao jornal. Mas para “cancelar” uma pessoa é necessário que haja uma insatisfação coletiva – isto é, faz-se necessário que certo grupo se una e decrete que a pessoa em questão não merece mais qualquer consideração pública. Portanto, não é possível “cancelar” alguém sem que haja certo clamor coletivo.

Se eu brigar com um amigo e resolver “cancelá-lo” da minha vida, isso não será um cancelamento no sentido da referida “cultura do cancelamento”: será apenas o bom e velho rompimento de relação, e vida que segue! Não, a cultura do cancelamento exige muito mais do que isso. Cancelar alguém nesse sentido recente e coletivista é mobilizar toda uma legião de pessoas para destruir a imagem de alguém, com o fim de fazê-lo perder seu emprego, contratos, apoiadores. Se o cancelado pedir perdão publicamente, pode ser que o cancelamento seja cancelado, mas nada garante que tais coisas irão acontecer. Em geral, o critério que orienta esse tipo de cancelamento é alguma pauta dos movimentos de esquerda, como os movimentos negros (Black Lives Matter), LGBTQI+, feministas (Me Too) etc. Diga algo que possa ofender as ideias desses movimentos e pronto: será cancelado! Game over! Fim da linha para você.

Seria a tal cultura do cancelamento fruto de alguma teoria sociológica complexa de esquerda, como aquelas apresentadas em obras complicadas e chatas como O Capital, de Karl Marx, ou A Dialética do Esclarecimento, de Theodor Adorno e Max Horkheimer? Não exatamente. Na verdade, a coisa toda surgiu a partir de críticas a celebridades do mundo pop. Quem conhece o perfil dos jovens esquerdistas de hoje muito provavelmente já presenciou o fenômeno da “problematização”, que, em resumo, é o ato de fazer crítica a toda e qualquer coisa (mesmo coisas banais) com base em pautas de esquerda. Por exemplo: o clássico comercial de margarina, em que aparece aquela família tradicional – marido, mulher e filhos – compartilhando um belo café da manhã. O problematizador perguntaria coisas como “por que tem de ser um casal heterossexual?”; “por que tem de ser uma família branca?” etc. A intenção pode até ser nobre, mas, convenhamos: é algo no mínimo chatíssimo de presenciar. Pois tais problematizações ganharam força no mundo das celebridades pop, como cantores, atores, apresentadores, influenciadores digitais etc., com os fãs exigindo deles comportamentos e falas alinhadas com as pautas de esquerda. Quem conhece um pouco do debate político também sabe que esse tipo de exigência tem base no “politicamente correto”, que é uma espécie de censura prévia a todo tipo de discurso que não for de esquerda.

E aqui voltamos à cultura do cancelamento: ela surgiu, portanto, a partir desse fenômeno de jovens esquerdistas problematizadores, justiceiros sociais e patrulheiros do “politicamente correto” atuando no maravilhoso mundo das celebridades pop. “Aquele rapper foi transfóbico! Vamos cancelá-lo!”; “Aquela cantora não está sendo tão engajada quanto deveria! Vamos cancelá-la!”. Nessa linha, já tivemos os cancelamentos de Taylor Swift, Demi Lovato, Scarlett Johansson, Katy Perry e Ryan Adams, entre outros.

Mas se engana quem pensa que o cancelamento só atinge as celebridades mais “badaladas”. Na verdade, os alvos podem ser desde pessoas anônimas (que por alguma razão tiveram exposição pública), passando por escritores, como foi o caso de J. K. Rowling, autora da série Harry Potter e que foi “cancelada” após criticar a chamada “ideologia de gênero”), chegando até mesmo a veneráveis pilares da cultura ocidental, como Aristóteles (cujo cancelamento chegou a ser imaginado, dado ele ter defendido, mais de 2 mil anos atrás, a escravidão e a inferioridade das mulheres). Note o leitor que estamos falando de um fenômeno que se iniciou em blogs sobre celebridades! E então chegamos ao mundo da universidade e da alta cultura, agora rodeado por essa coisa de “cancelamento”.

Ora, estamos diante de algo tão equivocado e absurdo que chega a desmotivar críticas mais sérias. Até mesmo figuras proeminentes da esquerda, como Noam Chomsky e Barack Obama, perceberam o absurdo que é a cultura do cancelamento. Está claro que se trata de algo destrutivo, que de fato já arruinou a vida de muitas pessoas – principalmente os anônimos que caíram no cancelamento por conta de alguma exposição pública ocasional. Mas, para não passar em branco, seguem ao menos algumas proposições óbvias sobre o assunto.

Em primeiro lugar, estamos diante de algo que é claramente infantil. Antigamente, se não gostávamos de alguma coisa, simplesmente a ignorávamos, ou argumentávamos contra ela. Hoje, porém, não basta ignorar ou criticar, é preciso “cancelar”, gerar prejuízo concreto para a vida das pessoas. Logo, fica claro que se trata, também, de uma atitude totalitária: como se os canceladores estivessem em posse da verdade absoluta e pudessem condenar uma pessoa à falência só porque ela expressou posições que foram consideradas ofensivas a certa “classe” ou minoria. Não há por que debater, argumentar, tentar convencer; não! É preciso cancelar logo de uma vez.

Tampouco importa se foram apenas algumas ou mesmo uma única fala que motivou o cancelamento: se for necessário reduzir a vida inteira de uma pessoa, incluindo todos os seus méritos e acertos, a um único “erro”, sem problemas! A causa é nobre e justifica o extremismo. Afinal, os cancelados estavam propagando alguma “cultura de ódio” e por isso mereciam sofrer, ser cancelados. E quanto à possibilidade de a própria cultura do cancelamento ser uma cultura de ódio? Não, nem pensar! O sentimentalismo da justiça social não falha.

Mas mesmo se tratando de algo gritantemente equivocado e perigoso, não cabe aqui defender um “cancelamento” da cultura do cancelamento: pois isso seria aderir à mesma lógica infantil que anima a coisa toda. Cabe, antes, denunciar que se trata de algo infantil, totalitário, arrogante, intolerante, antidemocrático e perverso; algo que pessoas adultas e decentes jamais aceitarão ou praticarão. Na vida adulta, simplesmente ignoramos aquilo de que não gostamos; ou então tentamos argumentar, convencer. Até “batemos boca” se for o caso. Mas não estamos interessados em destruir e “apagar do mapa” os nossos oponentes só porque eles pensam diferente e vez ou outra falaram ou fizeram algo que consideramos errado. Existe lei para punir os crimes. De resto, pessoas sóbrias e adultas cuidam de si. E tais pessoas não deixarão essa nova “cultura do cancelamento” prosperar.

John de Miranda é mestre e doutor em Filosofia, segundo-vice-presidente do think tank Clube Austral e vice-diretor da regional gaúcha da associação Docentes Pela Liberdade (DPL).

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