No mundo em que vivemos, existe um medo crescente de ameaças potenciais e mais desconfiança ainda na capacidade de superá-las. Se, em outros momentos, a ênfase era no poder do homem, agora, a fragilidade do indivíduo é tida como certa. Consequentemente, a aversão ao risco e a busca por segurança tornaram-se tendências predominantes no mundo de hoje sobre as ideologias, mesmo antes do surgimento da Covid-19.
O coronavírus só contribuiu para acentuar e revelar uma cultura do medo que já existe desde algumas décadas. Não que o medo seja uma paixão inútil. Em certas ocasiões, pode ser um ato de sabedoria e responsabilidade evitar certas ameaças, mas, em outros, pode promover a covardia ou o comportamento irracional. A peculiariedade, na situação atual, está no fato de que a busca pela segurança não se deve ao fato de a humanidade enfrentar mais perigos do que em outros tempos, mas decorre de uma narrativa de medo que só faz viralizar os possíveis danos.
Frank Furedi, sociólogo britânico autor de obras como How fear works e Culture of fear, observa que, desde o fim dos anos 70, uma atitude cultural pessimista sobre a capacidade das pessoas de lidar com a adversidade se tornou a norma e que, nas sociedades ocidentais, geralmente, são os mais ricos ou os mais seguros econômica e socialmente que tendem a se preocupar mais com sua segurança.
A informação sobre o risco, e não a experiência concreta das pessoas, é o que causa mais medo
Embora, no caso do coronavírus, qualquer pessoa tenha visto o perigo de perto, Furedi destaca que os medos mais proeminentes na sociedade de hoje geralmente não se baseiam na experiência direta, mas no que a mídia tem a dizer. A informação sobre o risco, e não a experiência concreta das pessoas, é o que causa mais medo. Não temos experiência direta da extinção de espécies, da elevação do nível do mar ou dos possíveis danos dos cereais transgênicos, mas aceitamos – tranquilamente – o que nos dizem os “especialistas” num grau de docilidade que um cachorro nutre por seu dono.
Furedi não quer dizer que o aumento do medo seja culpa exclusivamente da mídia, mas sim que a retórica do medo adotada pela imprensa reforça a cultura pessimista pré-existente. Experiências que sempre foram consideradas normais são agora alvo de alertas sobre possíveis riscos e, por vezes, também como fonte de possíveis ações judiciais para pleitear indenizações: beber água da torneira, festas de vizinhança em quarentena, gordura trans, sal e açúcar. E pensar que comemos muito churrasco grego no pão francês com “ki-suco de grátis” no terminal central enquanto esperávamos pelo ônibus – e, ao que parece, sobrevivemos.
As mudanças climáticas – de tempestades nas Bahamas a ventos solares – dão origem a alertas contínuos. Levar a criança ao parque para brincar parece ser um risco, pois ela pode estar exposta a acidentes, poluição, assédio de outras crianças e à perseguição de pedófilos. Agora, a moda enveredou para a multa por não usar máscara em público.
A linguagem da mídia popularizou os termos da retórica do medo, antes usados com mais moderação: população vulnerável, grupos de risco, sobrevivente em vez de vítima, extinção, tóxico, pandêmico, cancerígeno, espaço seguro, entre tantos outros, são termos com uma carga semântica muito forte para serem manejados gratuitamente.
Cada vez mais as ameaças incomodam e, em virtude do “princípio da precaução”, as autoridades devem tomar medidas sanitárias cabíveis, pois a ausência de indícios de danos não isenta as ações preventivas. Como o mundo tornou-se tão perigoso e complexo que, em vez de se fazer uma análise da probabilidade do risco, é suficiente basear-se na mera possibilidade de ele existir.
A última metáfora da moda – a tal da “bomba-relógio” – é usada para dramatizar cada vez mais ameaças, sejam elas mudanças climáticas, perda de biodiversidade ou transmissão de vírus. Estamos constantemente numa corrida paranoica contra o tempo para evitar danos irreversíveis, os quais serão um cataclismo para a espécie humana. Dizer que se tem medo pode até ser uma forma afetiva de mostrar maior sensibilidade aos problemas e, assim, passar à ação. Nesse ponto, Greta Thunberg já viralizou com um lema bem útil para nós: “Quero que entrem em pânico!”
Hoje, em teoria, continuamos a exaltar a coragem e o heroísmo, mas, na prática diária, pouco fazemos para cultivá-los
Tradicionalmente, o medo do desconhecido estava justaposto num sistema de crenças que orientava e dava segurança às pessoas. A religião transmitiu ensinamentos e práticas sobre o que temer e o que não temer. Mas, em tempos de turbulência moral como os atuais, as comunidades têm mais dificuldade em lidar com a incerteza. Isso tem consequências profundas sobre como as comunidades interpretam as ameaças e respondem a elas. No clima social de hoje, carecemos de uma virtude que possa servir como um antídoto para o medo. É por isso que contamos com recursos não morais – psicologia, terapia, especialistas – para guiar nossas respostas às ameaças. A confusão moral sustenta e reproduz a cultura do medo.
Paradoxalmente, o enfraquecimento do consenso moral intensifica a tendência à moralização, mesmo em questões que antes não eram consideradas do ponto de vista ético, como obesidade, amamentação, alimentação e reciclagem. Mas, como a modernidade sente-se incômoda diante das qualificações morais, em vez de denunciar as transgressões morais, o medo apela para punir “comportamentos de risco”, “escolhas não saudáveis” ou “ataques ao meio ambiente”.
Em controvérsias públicas, “a ciência diz” é usado como antes se usava “Deus quis”, mas as discussões sobre ameaças são frequentemente baseadas em convicções anteriores e não em novas descobertas científicas. E tais convicções levam facilmente a respostas contundentes.
Quando o medo assume uma forma descontrolada, as comunidades reagem às ameaças, muitas vezes refugiando-se em respostas binárias. O desconforto gerado pela incerteza pode levar à atitude de “certeza a qualquer preço” e de intolerância para com aqueles que questionam o dogma da moda, o que muitas vezes é um dos resultados lamentáveis desta causa.
Por isso, quem não segue os conselhos de especialistas em saúde pública é apresentado como “moralmente irresponsável” e seu comportamento é classificado como uma ameaça à comunidade. Nesse clima, o ceticismo perde sua conotação positiva, como característica de uma mente aberta e como uma atitude inerente à experimentação científica, a ser assimilado pelo “negacionismo” se alguém resolver questionar a ortodoxia dominante.
Na ausência de ideais e objetivos positivos, uma motivação baseada no medo surge por padrão. Para motivar as pessoas, apela-se ao seu sentimento de vulnerabilidade, à sua insegurança existencial e à sua ansiedade em relação ao futuro. Se antes arriscar era considerado um comportamento corajoso, agora é frequentemente apresentado como falha de uma pessoa irresponsável. A atitude de risco calculado, que pode gerar lucro ou prejuízo, tende cada vez mais a ser vista como um comportamento temerário. A perspectiva do medo não serviu para criar novos laços de solidariedade, mas tão somente mobilizações temporárias contra ameaças específicas, como a que agora observamos diante da pandemia do coronavírus.
Para combater essa cultura do medo, devemos estimular nossa resiliência, a fim de saber distinguir o real do irreal e o concreto do imaginário
Hoje, em teoria, continuamos a exaltar a coragem e o heroísmo, mas, na prática diária, pouco fazemos para cultivá-los. A vulnerabilidade aparece como a essência do que significa ser humano. Na cultura do medo, o sobrevivente substituiu o herói. A tendência de aumentar o risco e o perigo anda de mãos dadas com a idealização da segurança e da sobrevivência como valores em si mesmos.
Por fim, isso tem influenciado o modo de socializar as novas gerações e o modo de pensar dos adultos que as educam. Em vez de estimular a coragem por meio da construção do caráter, psicólogos especialistas têm procurado superar os medos com terapia. Muita terapia. A socialização dos jovens tem se baseado cada vez mais em técnicas terapêuticas que têm o efeito perverso de encorajar crianças e jovens a interpretar os problemas existenciais como problemas psicológicos e não como problemas normais de crescimento e da passagem pela vida. Como efeito, os jovens recorrem cada vez mais ao atendimento psicológico para enfrentar os medos de uma personalidade insegura, de não atingimento dos padrões, da baixa autoestima, de exames escolares e esportes competitivos ou de serem criticados nas redes sociais.
No fundo, para combater essa cultura do medo, devemos estimular nossa resiliência, a fim de saber distinguir o real do irreal e o concreto do imaginário, em prol de uma leitura das verdadeiras bases sociais que permitam nos lançar a um agir prático que supere a pusilanimidade típica dessa mesma cultura, que reduz os homens a seres fragilizados e ameaçados por toda a realidade que nos cerca.
André Gonçalves Fernandes é juiz de Direito, professor-coordenador de Filosofia e Metodologia do Direito do CEU Law School, pesquisador da Unicamp e professor-visitante da Universidade de Navarra (Espanha).
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